Wittgenstein sobre Semelhanças de Família
Tudo começa
com uma sequência de argumentos, de §66 a §68 das Investigações Filosóficas, de 1953. Estes parágrafos mudaram a
história do pensamento. Wittgenstein está tentando mostrar que o fato de empregar-se
um mesmo nome para vários exemplares não prova, automaticamente, que todos eles
têm certo conjunto de características comuns. Ou seja, está tentando refutar o
essencialismo. O essencialismo, neste caso, seria a doutrina de que qualquer
conjunto de exemplares chamados por um mesmo nome, empregado no mesmo sentido,
deve ter um conjunto de características comuns a todos eles, isto é, uma
essência. Ter o mesmo nome implicaria ter a mesma essência. Restaria apenas, em
seguida, descobrir no que consiste esta essência, isto é, trazer à tona o
conjunto de características compartilhadas por todos os exemplares do mesmo nome.
Essa forma de pensar havia dominado amplamente o pensamento filosófico até
então. Wittgenstein quer refutar precisamente esta ideia. Ele quer formular um
poderoso argumento anti-essencialista.
Exemplos
eloquentes da posição essencialista se encontram em argumentos que a personagem
de Sócrates emprega em vários diálogos de Platão. Como se sabe, Sócrates
cobrava de seus contemporâneos que lhe dessem uma definição para certos
conceitos. Ele perguntava sobre o que, afinal, eram a piedade, a coragem, a
justiça ou o conhecimento. Mas Sócrates não aceitava as primeiras respostas que
seus contemporâneos lhe davam, que lhe pareciam precipitadas e parciais. Aplicavam-se
a certos casos do conceito, mas não a outros. Então, ele trazia à tona casos que
todos reconheciam como pertinentes ao conceito em questão, mas a que a definição
oferecida parecia não se aplicar. Se conhecimento fosse sempre sensação, de que
forma poderia haver conhecimento matemático? Ou ainda casos que todos
reconheciam como não pertinentes ao conceito, mas a que a definição parecia assim
mesmo se aplicar. Se justiça fosse dar a cada um o que é seu, seria justo restituir
a um homem que se tornou insano a arma perigosa que antes lhe pertencia. Da
perspectiva de Sócrates, isso provava que a definição oferecida era
insatisfatória, que era preciso torná-la mais precisa, ou talvez abandoná-la
totalmente e ir em busca de outra mais adequada.
Isso era
assim por que a perspectiva de Sócrates era essencialista. Sócrates estava
convencido de que, para ser adequada, a definição de qualquer conceito tem que
ser tal que se aplique a todos os exemplares daquele conceito, e somente a
eles. Tem que ser tal que nenhum exemplar do conceito seja excluído, e nenhum
exemplar de outro conceito, incluído. Ora, mas só seria possível formular uma
definição abarcando ao mesmo tempo todos os exemplares do mesmo conceito, e nada
além, se os exemplares do mesmo conceito tivessem certas características que se
encontram sempre todas ao mesmo tempo em cada um deles, e nunca todas ao mesmo
tempo num exemplar de outro conceito. Ou seja, apenas se por trás de cada
conceito houvesse uma essência. No caso do Sócrates dos diálogos de Platão, sobretudo
do período médio em diante, o essencialismo conceitual era embasado no realismo
metafísico da teoria das formas. Mas aqui empregamos Sócrates como exemplo de
propositor da posição essencialista, e a teoria das formas não é tão importante
para o que queremos discutir. Mesmo que não houvesse uma teoria das formas de
fundo, Sócrates ainda defenderia seu essencialismo, como simples resultado de
sua concepção do que é uma definição adequada. A definição que Sócrates demanda
de seus contemporâneos é do tipo essencialista – e só é possível dá-la se o
essencialismo estiver correto.
Agora
voltemos a Wittgenstein. Na passagem de §66 a §68 Wittgenstein formula seu
agora famoso argumento das “semelhanças de família”, que desafia precisamente o
essencialismo. Quer mostrar que nem sempre por trás do mesmo nome está uma essência.
Ele se volta naquela passagem para o conceito de jogo. Há diversos tipos de
jogos: os que se jogam sozinho, os que se jogam com outro, os que se jogam
contra outro, os que envolvem força, os que envolvem técnica, os que envolvem
estratégia, os que se jogam com bola, os que se jogam com cartas, os que se
jogam com tabuleiro, os que envolvem uma música, os que se desenvolvem por
rodadas e os que repetem sempre o mesmo padrão. Todos são chamados pelo mesmo
nome, jogo, mas dificilmente se encontrariam certas características presentes
ao mesmo tempo em todos eles, e somente neles. Por isso, toda tentativa de
definição do jogo em função de uma essência parece fadada ao fracasso. Jogos
não têm uma essência comum que os autoriza a serem chamados pelo mesmo nome. Mas,
então, seria arbitrário chamá-los todos pelo mesmo nome? Deveríamos abrir mão
desta nominação comum? Não necessariamente, pois há algo que os autoriza a
serem chamados pelo mesmo nome. Mas não é uma essência. Em vez disso, diz Wittgenstein,
eles possuem algo assim como uma semelhança de família.
Quando se
vê a foto de uma família reunida, digamos (permitam-me privilegiar aqui um exemplo exclusivamente feminino), de uma mãe (A) com suas três filhas
(B, C e D), se observa que, embora não exista uma característica única presente
ao mesmo tempo em todas elas, entre elas se observam características
recorrentes, A sendo parecida com B no aspecto X, A com C no aspecto Y, A com D
no aspecto Z, X ocorrendo também em C, mas não em D, Y ocorrendo também em D,
mas não em B etc. Todas juntas na mesma foto, mãe e filhas apresentam o que se
pode chamar de semelhança geral de família, a qual, contudo, não consiste num
conjunto de características presentes em todas ao mesmo tempo, e sim num
conjunto de semelhanças sobrepostas, tais que nenhuma semelhança isolada
permite reconhecer todas as mulheres da foto como parte da mesma família, mas
as semelhanças tomadas em conjunto produzem a impressão geral de tratar-se de
uma mesma família. Pode-se dizer que mãe e filhas são todas semelhantes entre
si, criando uma impressão de unidade, mas não por causa de uma única semelhança
universal, e sim de um conjunto de semelhanças não universais recorrentes e
compartilhadas.
Pois bem, o
argumento das semelhanças de família se inicia deslocando, por analogia, esta constatação
do terreno visual para o conceitual. Assim como os olhos são capazes de
reconhecer uma unidade de conjunto entre exemplares que não compartilham de
nenhuma característica universalmente comum, a intuição linguística também
procederia da mesma forma, reunindo sob o mesmo nome exemplares que, em vez de
uma essência, têm apenas “semelhanças de família”. Isso se aplicaria já de
imediato aos jogos. Os jogos são semelhantes entre si: o xadrez tem em comum
com o futebol que ambos se disputam entre dois adversários, embora no xadrez
sejam dois indivíduos e no futebol, dois times; o futebol tem em comum com o
tênis que ambos se disputam com ajuda de uma bola, embora no futebol seja uma
bola grande com que se tem contato direto, enquanto no tênis é uma bola pequena
que se rebate com uma raquete; o tênis tem em comum com o vôlei que ambos
precisam passar a bola para a quadra adversária por cima de uma rede, embora no
tênis seja com a bola tocando o chão duas vezes e no vôlei, apenas uma vez, e
assim por diante. Nenhum dessas semelhanças, contudo, é tal que esteja presente
em todos os jogos. Mas as semelhanças não universais, recorrentes e
compartilhadas entre os diversos tipos de jogos criam entre todos eles uma
imagem geral de pertença à mesma categoria de coisa, um sentido geral de
unidade que Wittgenstein denomina de semelhança de família. Jogo, portanto, não
é um conceito que possa ser definido a partir de uma essência; ele requer, em
vez disso, a flexibilidade e diversidade da ideia de semelhança de família.
Mas essa
ideia não se aplica apenas ao jogo. Ela lança, na verdade, uma suspeita contra
o essencialismo em geral. E isso, como veremos, tem consequências muito sérias.
Se
concordássemos com Sócrates a respeito de definições, então, toda vez que fosse empregado um mesmo conceito para diversos exemplares de coisas, deveria
existir em todos estes exemplares um conjunto de características comuns sempre
presentes ao mesmo tempo em todos eles, e nunca todas ao mesmo tempo em outros.
Ou seja, onde houvesse o mesmo conceito, haveria a mesma essência. Se, contudo,
levarmos agora em conta o que Wittgenstein disse sobre semelhanças de família,
então, o uso do mesmo conceito ou do mesmo nome para uma variedade de coisas
não forneceria nenhuma garantia a priori de que se possa extrair de todas elas
um conjunto fixo de características comuns. Unidade de nome não seria mais
garantia de unidade de essência. Poderia sempre ser o caso de que o mesmo nome
estivesse sendo empregado para uma variedade de coisas porque nossa intuição linguística
percebe entre elas semelhanças de família e as reúne sob um mesmo conceito.
Neste caso, elas teriam semelhanças sobrepostas, recorrentes e compartilhadas,
mas não universais nem fixas, nada que se possa chamar de uma essência. Ainda
poderia ser o caso de que por trás de uma variedade de coisas chamadas pelo
mesmo nome se descobrisse uma essência. Mas, se tal for o caso, terá que ser
provado. Uma definição essencial, listando as características universais fixas,
terá que ser proposta e resistir ao teste dos contraexemplos. O que muda não é que
não existam mais essências. O que muda é que a unidade de nome deixa de ser
considerada uma garantia a priori da unidade de essência. Unidade de essência é
não mais o único, mas um dos fatores possíveis por trás da unidade de nome ou
conceito: o outro fator possível é uma semelhança de família.
Como isso
afetaria nosso querido Sócrates? Bem, quando Sócrates pede a seus
contemporâneos que lhe deem uma definição de conceitos como piedade, coragem,
justiça ou conhecimento e seus interlocutores lhe dão definições tradicionais,
que se aplicam a alguns casos sim, mas outros não, que incluem exemplos do
conceito, mas não somente dele etc., Sócrates rejeita suas definições sob um
pressuposto essencialista. Sócrates toma como certo que por trás do uso do
mesmo nome se esconde uma mesma essência. Como a essência estaria presente em todos
os exemplares de um conceito, e somente neles, e como a definição oferecida por
seus interlocutores falha em listar as características universais fixas que
compõem essa essência, ela é, por conseguinte, uma má definição, carente de
revisão. Mas, e se Sócrates levasse em conta a ideia wittgensteiniana de
semelhanças de família? Bem, agora ele não poderia tomar como certa a unidade
de essência por trás da unidade de nome. Ele teria que levar em conta a
possibilidade de que o conceito em questão se aplicasse a uma diversidade de
casos sem que de entre eles fosse possível extrair sequer uma única
característica universal fixa. Os casos que exemplificam um conceito poderiam
ser um conjunto sem essência, ligados entre si por semelhanças sobrepostas,
reiteradas e compartilhadas, mas nunca universais. Se os casos que
exemplificam, por exemplo, o conceito de coragem fossem ligados uns aos outros
apenas por semelhanças de família, então, nada impediria que uma definição de
coragem fosse adequada mesmo que não se aplicasse a todos os casos que
exemplificam o conceito.
Se essa possibilidade existe, então, a definição de conhecimento como sensação não se aplicar ao conhecimento matemático ou a definição de justiça como dar a cada um o que é seu se aplicar ao caso da devolução da arma ao dono insano não poderiam contar automaticamente como provas de que aquelas são definições inadequadas. Elas antes eram descartadas como inadequadas porque se tinha certeza de antemão de que a definição adequada seria do tipo que revelasse uma essência. Como os contraexemplos provavam que elas não revelavam uma essência, então, eram inadequadas. Mas, se nem todo conjunto de exemplos ligados pelo mesmo nome tem uma unidade de essência, então, a definição que revela uma essência não pode ser considerada de antemão a única adequada. E, portanto, uma definição que não revela a essência não pode ser descartada de antemão como inadequada. Ao tomar contraexemplos como razões suficientes para descartar as definições dadas por seus contemporâneos, Sócrates agia sob o pressuposto essencialista. Derrubado o pressuposto essencialista, Sócrates teria que rever o seu procedimento. Contraexemplos não são mais automaticamente provas de que uma definição é inadequada: eles podem ser também provas de que uma definição é local ou parcial, isto é, que capta características de apenas alguns membros do conjunto, não sendo isso, contudo, necessariamente uma falha, mas talvez a única estratégia possível diante de um conjunto excessivamente diverso ligado apenas por semelhanças de família.
Se essa possibilidade existe, então, a definição de conhecimento como sensação não se aplicar ao conhecimento matemático ou a definição de justiça como dar a cada um o que é seu se aplicar ao caso da devolução da arma ao dono insano não poderiam contar automaticamente como provas de que aquelas são definições inadequadas. Elas antes eram descartadas como inadequadas porque se tinha certeza de antemão de que a definição adequada seria do tipo que revelasse uma essência. Como os contraexemplos provavam que elas não revelavam uma essência, então, eram inadequadas. Mas, se nem todo conjunto de exemplos ligados pelo mesmo nome tem uma unidade de essência, então, a definição que revela uma essência não pode ser considerada de antemão a única adequada. E, portanto, uma definição que não revela a essência não pode ser descartada de antemão como inadequada. Ao tomar contraexemplos como razões suficientes para descartar as definições dadas por seus contemporâneos, Sócrates agia sob o pressuposto essencialista. Derrubado o pressuposto essencialista, Sócrates teria que rever o seu procedimento. Contraexemplos não são mais automaticamente provas de que uma definição é inadequada: eles podem ser também provas de que uma definição é local ou parcial, isto é, que capta características de apenas alguns membros do conjunto, não sendo isso, contudo, necessariamente uma falha, mas talvez a única estratégia possível diante de um conjunto excessivamente diverso ligado apenas por semelhanças de família.
Ocorre que
não é apenas Sócrates que operava sob o pressuposto essencialista, mas sim, de
uma forma ou de outra, praticamente toda a tradição do pensamento filosófico. E
isso não é um exagero. Quero usar três exemplos que considero interessantes: a)
o desafio de Gettier à definição de conhecimento como crença verdadeira
justificada, b) a crítica de Kant a toda concepção consequencialista de dever,
e c) a análise do positivismo jurídico sobre a relação entre direito e moral.
Esses exemplos ajudarão a perceber a dimensão das consequências do argumento
wittgensteiniano das semelhanças de família.
A concepção
de conhecimento que se tornou tradicional desde o Teeteto, de Platão, o define
como crença verdadeira justificada. Para que um sujeito S possa ser descrito
como sabendo que p (“p” sendo uma proposição, como “Chove lá fora”), é preciso
que S creia que p (condição 1: crença, por exemplo, que S creia que chove lá
fora), é preciso que a crença de S em p seja verdadeira (condição 2:
verdadeira, por exemplo, que de fato chove lá fora) e é preciso que a crença de
S em p seja justificada (condição 3: justificada, por exemplo, que S tenha
olhado pela janela e visto que chove, ou tenha visto alguém chegar da rua todo
ensopado, ou tenha ouvido o som de pingos contra o telhado etc.). Esta
definição foi, por muito tempo, considerada amplamente satisfatória. Contudo, em
1963 Gettier publicou um paper que a desafiou seriamente. Neste paper Gettier
listava um conjunto de contraexemplos em que havia crença verdadeira
justificada mas não havia conhecimento. Alguns exemplos são como esses a
seguir. S participa de uma entrevista de emprego e acredita ter 2 dólares
consigo na carteira, motivo por que, como também acredita que será chamado para
a vaga, supõe que o homem com dois dólares na carteira será chamado para a
vaga; contudo, em vez de S, outro homem, T, é chamado para a vaga, sendo o caso
de que, no dia da entrevista, sem o conhecimento de S, T tinha de fato dois
dólares na carteira, enquanto S, ao contrário do que supunha, não tinha dólar
algum na carteira; desta forma, a crença de S de que o homem com dois dólares
na carteira seria chamado para a vaga se provou verdadeira e era justificada,
mas não pode ser descrita como conhecimento. Outro: S avista num campo gramado
dois cachorros poodle, que ele equivocadamente acredita serem ovelhas, de modo
que mantém a crença de que existem duas ovelhas no campo gramado; ocorre que,
apesar das duas figuras que S viu serem na verdade poodles, existem no mesmo
campo duas ovelhas, apenas escondidas da vista de S por se encontrarem atrás de
uma mata espessa e mais alta; neste caso, a crença de S de que havia duas
ovelhas no campo gramado era verdadeira e justificada, mas não pode ser
descrita como conhecimento. Para terminar, um terceiro: S liga a TV e vê
passando num dos canais uma partida entre Roger Federer e Rafael Nadal que
tinha ocorrido no ano anterior, que estava sendo exibida gravada pelo canal em
vez da partida ao vivo entre os dois tenistas, cuja transmissão tinha sido
interrompida por um problema de sinal; em vista disso, S acredita que Federer e
Nadal estão jogando um contra o outro naquele momento, o que é verdade, mas não
com base no que está vendo no canal, que foi gravado um ano antes; neste caso,
S também mantém uma crença que é verdadeira e justificada mas que não consiste
em conhecimento. Com base em contraexemplos deste tipo, Gettier pretende
demonstrar que crença verdadeira justificada não é uma definição adequada, pelo
menos não uma definição suficiente, de conhecimento.
Segundo
caso. Kant famosamente argumentou que o dever moral precisa ser caracterizado
pela sua conformidade com uma lei moral, e não pelas consequências da
realização da ação que ele prescreve. Se pagar de volta o dinheiro que lhe foi
emprestado é um dever, é assim porque pagar de volta empréstimos é uma ação
correta, conforme à lei moral, e não porque pagar de volta certo empréstimo
produz essa ou aquela consequência positiva, ou ainda porque produz mais consequências
positivas que negativas. Nenhuma concepção consequencialista do dever era, para
Kant, aceitável. Para provar seu ponto, Kant se serviu de contraexemplos
cuidadosamente escolhidos, do tipo exemplificado pela seguinte situação
hipotética. Digamos que aquele que emprestou o dinheiro esteja prestes a morrer,
não podendo, portanto, ele mesmo beneficiar-se diretamente, e não tenha também nenhum
familiar ou credor que possa beneficiar-se indiretamente do valor a ser pago de
volta pelo empréstimo; mesmo assim, diríamos que nesta circunstância quem lhe
tomou dinheiro emprestado ainda tem o dever moral de pagar-lhe de volta; se o
dever moral pudesse ser caracterizado em função das consequências positivas
resultantes da ação que ele prescreve, então, no caso exemplificado, em que
praticamente nenhuma consequência positiva pode advir do pagamento do
empréstimo, tal pagamento deixaria de ser um dever moral; se, no entanto,
continua nos parecendo estar em jogo um dever moral, com aquele que tomou o
empréstimo devendo pagar de volta o valor emprestado mesmo se nenhuma consequência
positiva disso venha a resultar, então, isso prova que o que constitui o dever
moral enquanto tal não são jamais as consequências, mas alguma outra coisa. Por
meio de contraexemplos assim, Kant pretende provar que nenhuma concepção
consequencialista do dever moral é jamais aceitável ou satisfatória.
Agora, o
último caso. Uma das teses características do positivismo jurídico é a chamada
tese da separabilidade. Segundo essa tese, não existe qualquer conexão
necessária entre direito e moral, ou, para ser mais preciso, nenhuma conexão
necessária entre uma norma ser juridicamente e moralmente válida. Uma norma
pode ser juridicamente válida e moralmente inválida (mentir em sua própria
defesa, não pagar dívidas de que o devedor não tenha provas etc.). Pode também
ser moralmente válida e juridicamente inválida (não contar um segredo de um
amigo, não trair sua namorada de escola etc.). Qualquer conexão entre direito e
moral que possa existir é do tipo contingente, não necessária, e não é uma
condição para que o direito tenha sua validade própria. Para sustentar este
ponto, o teórico positivista se serve de um contraexemplo à tese da conexão
necessária, algo mais ou menos como a seguinte situação: É possível imaginar um
regime tirânico e perverso, que governe uma comunidade durante certo tempo, na
vigência do qual as normas que o regime produz são juridicamente válidas,
embora violem padrões morais mínimos, instituindo privilégios, discriminações,
perseguições, torturas, censuras, permitindo estupros, assassinatos de
opositores e descontentes, escravidão de condenados etc. Seria de todo
verdadeiro que este era um regime moralmente vil, moralmente lamentável, do
tipo que se preferiria que jamais existisse e jamais voltasse a se repetir. Mas
nada disso faria das normas que aquele regime produz e faz cumprir menos que
juridicamente válidas. Se o direito tivesse uma conexão necessária com a moral,
então, ou mesmo o direito do regime perverso teria que ser moral, ou, não o
sendo, também não seria jurídico. Como, no entanto, é possível para o direito
do regime perverso ser jurídico sem ser moral, a conexão entre ambos se prova
não necessária. Com contraexemplos deste tipo, o teórico positivista pretende
provar que não existe entre direito e moral nenhuma conexão necessária,
sustentando, assim, a tese da separabilidade.
O que a
consideração a sério do argumento das semelhanças de família produziria de
mudança nestes esquemas de argumentação? Vejamos. Gettier argumenta com
contraexemplos sob a suposição de que uma definição adequada de conhecimento
teria que dar conta de todos os casos de conhecimento, inclusive os casos problemáticos
explorados por seus exemplos hipotéticos. E quem o lê pensa: Sim, se a
definição não consegue cobrir inclusive estes casos, não é ainda uma definição
adequada. Da mesma forma, Kant argumenta com seu contraexemplo sob a suposição
de que uma concepção adequada de dever moral teria que dar conta de todos os
casos de dever moral, inclusive o do emprestador moribundo. E quem o lê pensa
assim: Sim, se a concepção consequencialista não consegue cobrir este caso,
então, não é uma concepção adequada de dever moral. Ainda no mesmo espírito, o
teórico positivista argumenta com seu contraexemplo sob a suposição de que a
tese da conexão necessária entre direito e moral teria que dar conta de todos
os casos de regimes jurídicos, inclusive do seu exemplo do direito produzido
por um regime moralmente perverso. E quem o lê pensa: Sim, se a tese da conexão
necessária entre direito e moral não consegue cobrir este caso, então, não pode
ser verdadeira nem revelar uma característica relevante sobre o direito em
geral. Quando descritos desta forma, pode-se notar mais facilmente que cada um
destes casos envolve o mesmo tipo de pressuposto essencialista que antes atribuímos
ao Sócrates dos diálogos platônicos. Uma definição ou concepção adequada tem
que revelar a essência e, por isso, tem que dar conta de todos os casos; se um
contraexemplo consegue problematizar a definição ou concepção, ele prova,
então, que ela falhou em revelar a essência e que, por isso, não é adequada.
E, da mesma
forma que dissemos que aconteceria a Sócrates, também o significado dos
contraexemplos de Gettier, de Kant e dos positivistas muda de sentido se se
leva em conta o argumento das semelhanças de família. E se os vários exemplos
de conhecimento forem um conjunto diverso ligado apenas por semelhanças de
família, de forma que a definição tradicional dá conta de um número
significativo de casos relevantes, mas não dos casos problemáticos que Gettier
ilustrou, sem que isso signifique automaticamente que a definição tradicional é
inadequada? E se os vários exemplos de dever moral forem um conjunto diverso ligado
apenas por semelhanças de família, de forma que a concepção consequencialista
dá conta de um número significativo de casos relevantes, mas não do caso
problemático que Kant ilustrou, sem que isso signifique automaticamente que a
concepção consequencialista é inadequada? Finalmente: E se os vários exemplos
de direito forem um conjunto diverso ligado apenas por semelhanças de família,
de forma que a tese da conexão necessária entre direito e moral dá conta de um
número significativo de casos relevantes, mas não do caso problemático de
regimes moralmente perversos, sem que isso signifique automaticamente que a tese
da conexão necessária é falsa?
O que
queremos dizer com isso não é que, dado o argumento das semelhanças de família,
nenhum contraexemplo tem mais qualquer importância em filosofia e os argumentos
de Gettier, de Kant e dos positivistas jurídicos não devem mais sequer ser
levados em conta. Longe disso. O que queremos dizer é que tais contraexemplos
deixam de ter o significado que se lhes atribuía quando um pressuposto
essencialista estava ainda em voga. Sob o pressuposto essencialista, o
contraexemplo prova que a definição ou concepção para a qual consegue mostrar
uma exceção não coberta é inadequada. Mas esta “prova” só era considerada como
tal por acreditar-se de antemão que a definição ou concepção adequada de um
conceito era do tipo essencialista, do tipo de que revelava um conjunto de
características universais fixas presentes em todos os exemplares daquele
conceito. Se este pressuposto for abandonado em favor da possibilidade de que o
conjunto de exemplares de certo conceito seja heterogêneo e ligado apenas por
semelhanças de família, ficaremos sem saber se os contraexemplos de fato
relevam que a definição ou concepção em questão é inadequada, ou se revelam
apenas que ela é local e parcial, o que não impede que ainda seja informativa e
satisfatória, levando-se em conta casos centrais relevantes e deixando-se de
lado casos periféricos que mantêm com os casos centrais apenas semelhanças de
família. Deixa de estar em jogo uma lógica da definição ou concepção que cobre
ou tudo ou nada, que se aplica a todos os casos e só a eles, e passa a estar em
jogo uma lógica mais sutil e multinivelada, em que definições e concepções dão
conta de certos níveis ou grupos dentro de um conceito, devendo os demais ou
serem tratados com acréscimos e variações da definição ou concepção principal
ou com definições e concepções alternativas voltadas para suas especificações.
A compreensão deixa de ser um jogo em que se pescam todos os peixes com a mesma
isca e passa a adotar diferentes estratégias para diferentes níveis e
propósitos de trabalho. E este sentido pragmatista, falibilista, modesto, diversificado e flexível é, no fundo, o verdadeiro impacto e legado do argumento das semelhanças de família, de Wittgenstein.
Comentários
O exemplo da palavra, insisto, da palavra "jogo" é exemplar; mas o que dele é implicado vale para a palavra "elétron" ou para a palavra "célula". A não ser que na sua ontologia a distinção entre tipo natural e tipo artificial-cultural seja borrada em favor do segundo, não é uma boa inferência passar da análise das peculiaridades da semântica da palavra "jogo" e dos jogos para outras palavras e entidades. Penso que Witt, na esteira desenrolada por Bolzano, Husserl e Frege, está sugerindo que conceito não é um tipo natural, mas um artefato, como os jogos.
Não entendo o que entendes por anti-essencialismo, pois o essencialismo foi eliminado já por Hume.
No demais, ótimo texto! Muito agradável a leitura, foi rigoroso sem ser sibilino ou petulante, como muitas vezes vê-se por aí...
Por último, há algum modo de busca no blog? Quero saber se já foi escrito algo sobre o conhecido giro linguístico. Do contrário, recomendo fortemente esse tema ao autor, porque é certo que seria mais um fantástico artigo!
Abraço