Decisão judicial nas teorias descritivas do direito
Teorias
positivistas como as de Austin, Kelsen e Hart alegam serem descritivas. Isto
quer dizer que pretendem descrever o direito tal como ele se apresenta, em vez
de legitimar o direito que existe ou prescrever o que deveria existir. Isso
permite que um fale do direito como comandos com base em ameaças do soberano,
outro como um sistema de normas coercitivas e outro ainda como união de regras
primárias e secundárias. Segundo alegam, isso é o que se constata do direito tal como se apresenta na sociedade. Até aí tudo bem.
Contudo,
quando falam de decisão judicial, não é claro em que sentido tais teorias ainda
são “descritivas”. Senão, vejamos. Se descrever for constatar como a coisa se
apresenta, descrever a decisão judicial seria descrever como os juízes decidem.
No nível epistêmico e metodológico, este dificilmente seria um ofício
filosófico, e sim sociológico. Se a descrição do direito pode ser a descrição
do conceito abstrato de direito (abordagem descritivo-conceitual), a descrição
da decisão judicial só pode ser a descrição da atividade concreta de decisão
(abordagem descritivo-empírica). Daí que, teorizando no viés filosófico, não
seja disso que se ocupam. Quero propor a hipótese de que, quando falam da
atividade judicante, o que aquelas teorias descritivas de fato fornecem são respostas
a alguns desafios antipositivistas que foram postulados no nível das decisões
judiciais. Esta é a primeira formulação da hipótese, que possivelmente
transformarei em artigo.
Austin quer
mostrar que a decisão judicial é um exercício delegado de soberania, isto é, é
o ofício de simplesmente aplicar as ordens do soberano quando houver uma e de
criar soluções novas para quando não houver decisão prévia, a qual se
tornará legítima pela omissão do soberano em regular em
contrário. Sua preocupação é mostrar que inovação judicial (argumento que os jusnaturalistas ingleses usavam contra o positivismo) não é exceção à ideia geral de soberania absoluta
(e portanto não ameaça o positivismo).
Kelsen quer
mostrar que, a despeito da finalidade de orientar e controlar a conduta a
partir de critérios objetivos, o que as normas jurídicas fornecem aos juízes é
apenas uma moldura de possibilidades de interpretação, ao mesmo tempo
constrangendo o decisor a escolher uma das alternativas contidas na moldura,
mas deixando-o completamente livre para optar por qualquer uma delas. Sua preocupação é mostrar que a indeterminação da linguagem e a
discricionariedade da decisão judicial (argumentos que a escola da livre
investigação jurídica usava contra o positivismo) não são exceção à ideia geral
de sistema dinâmico de normas de conduta (e portanto não ameaçam
o positivismo).
Hart quer
mostrar que o fato de que as regras possuem zona de penumbra e textura aberta,
que explicam as quebras de expectativas nos casos difíceis e refutam a visão
dedutivista e inflexível criada pelo formalismo jurídico, não impede que elas
também tenham zona de foco e poder de constrição, que explicam por que a
maioria dos casos são fáceis e refutam a imagem cética criada pelo realismo
jurídico norte-americano. Sua preocupação é mostrar que a indeterminação da linguagem
e a discricionariedade da decisão judicial (argumentos que o realismo usava
contra o positivismo) não são exceção à ideia geral de orientação por regras (e, portanto, não ameaçam o positivismo).
Nenhum
destas é uma teoria sobre como os juízes decidem. São na verdade teorias sobre
como certas anomalias da decisão judicial não ameaçam o conceito positivista de
direito que se forneceu antes. São tentativas de desarmar argumentos
antipositivistas que se baseiam nas anomalias da decisão judicial, de integrar
certos fatos perturbadores da realidade judicial com a teoria conceitual que se
está defendendo, de reinterpretar as anomalias como compreensíveis para quem
entendeu bem o conceito principal. Elas não são descrições da decisão
judicial, mas antes, como antecipei em minha hipótese, respostas a desafios antipositivistas que foram postulados no nível das decisões judiciais.
Talvez por
isso Raz, tão positivista descritivo quanto os anteriores, considere que uma
teoria da decisão judicial de viés filosófico não pode ser descritiva. Se for
descritivo-empírica, não será nem geral nem filosófica, mas local e sociológica.
Se for descritivo-conceitual, será não uma teoria da decisão judicial que
acontece, mas da que estaria em melhor conformidade com o conceito de direito
que antes se forneceu (o que não chega a ser normativo, mas é
coerentista-teleológico num nível que flerta com o normativo). É melhor deixar
a descrição da decisão judicial para a sociologia do direito e partir logo para
a abordagem normativa do assunto. Raz propõe que se separe, de um lado, teoria
do direito, um ofício descritivo e neutro, e, de outro lado,
teoria da decisão judicial, um ofício que requer uma abordagem normativa sobre
como os juízes deveriam decidir.
Concorde-se
ou não com a solução de Raz, ela tem pelo menos o mérito de ser mais honesta
que a caracterização das teorias positivistas da decisão judicial como “descritivas”.
Que fique claro: Não acuso as teorias da decisão judicial que os positivistas
forneceram de serem normativas (eles se recusam a falar de como
os juízes deveriam decidir), e sim de serem ratificações do conceito
positivista de direito que introduziram, defesas desse conceito de direito
contra argumentos baseados em anomalias judiciais. Elas não são descritivas da
decisão judicial porque não a descrevem, apenas a tematizam para discutir se
seu conceito geral de direito se sustenta perante contraexemplos práticos.
Comentários
"Se descrever for constatar como a coisa se apresenta, descrever a decisão judicial seria descrever como os juízes decidem. No nível epistêmico e metodológico, este dificilmente seria um ofício filosófico, e sim sociológico."
Esse trecho tem implicações duvidosas. Tome a minha própria pesquisa como exemplo. A minha pesquisa envolve, penso eu, a análise descritiva (i.e. moralmente neutra) das decisões judiciais. Eu observo a forma como juízes fundamentam as suas decisões e tento entender a estrutura lógica dos seus argumentos. (Quando os argumentos são falaciosos, eu até digo "falácia!", embora veja isso como uma crítica lógico-epistemica, não como uma crítica moral.) A análise da estrututa lógica de argumentos judiciais é feita com um aparato conceitual que eu aprendi em cursos de filosofia. Então: o que eu estou fazendo não é filosofia? Não é descritivo (considerando que eu exponho a estrutura dos argumentos tal como formulados pelo juízes)?
Grande abraço,
Fábio
será que a tese posta não seria injustiça contra o pensamento mais maduro de Kelsen, que,
no teoria geral das normas, abandonou inclusive a tese da moldura em detrimento do irracionalismo puro e simples do aplicador do direito. De fato, se a decisão judicial ofende regra explícita, sem qualquer alternativa de sentido outro, trata-se de norma individual. Desse modo, a tese de Kelsen contraria sua própria descrição do direito, como ordenamento escalonado etc...
Grato pelo esclarecimento,
João Paulo Castro
John Gardner tem um bom artigo sobre esse assunto (Capítulo 11 da coletânea "Law as a Leap of Faith"). Ele concorda que análise conceitual e pesquisa empírica são coisas distintas, mas insiste que a demarcação entre filosofia e sociologia não é tão nítida como muitos pensam. Afinal, sociólogos também fazem análise conceitual (pense em Weber e seus tipos ideais) e filósofos não conseguem deixar de trazer algumas "empirical assumptions" para a sua análise (nem que sejam "assumptions" relativamente banais sobre como certos termos são usados na linguagem ordinária, por exemplo).
Se nós dois ainda discordamos em relação a alguma coisa, então discordamos sobre a nitidez da fronteira que separa a filosofia da sociologia... Acho que Gardner explora o assunto melhor do que ninguém.
Abraço,
Fábio