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Mostrando postagens de julho, 2008

"A República" (II): O método socrático em ação, ou por que a justiça não consiste em dar a cada um o que é seu

Na primeira postagem sobre a República, disse que essa obra era um diálogo, uma conversa entre amigos sobre a justiça. Já falei também que Sócrates tinha esse bom hábito de introduzir na conversa temas importantes e que, para impedir os amigos de sabotarem a discussão com alguma resposta precipitada e superficial, submetia a testes as respostas que lhe davam, problematizando-as a tal ponto que os próprios amigos reconhecessem a necessidade de dar início à procura por uma resposta melhor. Pois bem, nessa postagem vou mostrar esse método de Sócrates em ação. Um dos interlocutores sugere, citando as famosas palavras de um poeta grego, que a justiça consiste em "dar a cada um o que é seu". Na época de Sócrates, essa era uma definição bastante famosa e popular do que era a justiça. Assim, diria um grego, quando se julga um réu por um crime, trata-se de dar ao culpado a punição e ao inocente a absolvição. Quando se julga sobre um contrato, trata-se de dar ao comprador a coisa visad

"Ser e tempo", de Heidegger (I)

Os livros de filosofia costumam carregar a fama de serem difíceis. Nós, o público leigo, costumamos pensar neles como longas digressões sobre coisas muito abstrusas numa linguagem que as torna ainda mais inacessíveis. Embora essa imagem, na maioria das vezes, seja falsa, sendo apenas o caso de que não damos a esses livros a chance devida para nos seduzirem e nos aprisionarem, no caso de "Ser e tempo", de Heidegger, aquele estereótipo do texto truncado, que nos causa dor de cabeça e desespero durante a leitura, não está longe da verdade. Heidegger era um gênio, sem dúvida, com idéias revolucionárias e robustas, mas não era um autor particularmente preocupado em fazer-se entender fora do círculo de filósofos profissionais que conviviam com ele. Por isso, sua linguagem, excessivamente abstrata e parcamente ilustrativa, representa um obstáculo real na tarefa de acesso à sua filosofia. Gostaria, se possível, de prestar aqui uma humilde contribuição a essa tarefa, introduzindo de m

"A República" (I)

Encerrei ontem meu semestre letivo na Faculdade de Castanhal (FCAT), onde tive oportunidade de ensinar Ciência Política e Teoria Geral do Estado a duas belas turmas que ficarão sempre guardadas com muito carinho em minha memória. No próximo semestre não comporei o quadro docente dessa instituição, porque só haverá novamente uma turma de calouros no início de 2009, quando, certamente, estarei de volta para tirar o sono de novos alunos e, de vez em quando, ensinar-lhes alguma coisa. Propus, contudo, um curso de extensão sobre a obra "A República", de Platão, que, se aprovado pela FCAT, ministrarei no mês de setembro próximo. Será uma boa oportunidade de rever meus queridos ex-alunos. Será também uma boa oportunidade para falar sobre uma das maiores obras filosóficas da humanidade, um verdadeiro monumento à racionalidade e à reflexão política. Até lá, soltarei de vez em quando algumas pílulas de comentários aqui no blog, onde, suponho e torço, esses alunos e vários outros leitor

Sobre "Atire a primeira pedra"

Meu convicto ateísmo nunca me impediu de apreciar ensinamentos bíblicos, especialmente alguns provérbios e parábolas. Quanto ao Cristo, em que pese não considerá-lo nem Deus nem coisa que o valha, admiro-o francamente como belo exemplo de ser humano e como um grande sábio da historia universal. Hoje vou comentar uma passagem famosa, constante em João 8:7: "Que atire a pedra aquele que estiver isento de pecado". Em primeiro lugar, considero essa uma das melhores frases da história da humanidade. Sempre admirei a sagacidade do Cristo. Como naquela vez em que os fariseus queriam jogar o povo contra ele e lhe perguntaram se deviam pagar o imposto a Roma, ao que ele respondeu, depois de ouvir que a imagem gravada nas moedas romanas era de César: "Então dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Resposta seca, metafórica e brilhante. Na passagem citada, também ocorre isso. Agora os fariseus lhe trazem uma mulher apanhada em adultério e lhe pedem que a julgue