A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen
No começo de sua “Teoria pura do direito”, na seção denominada “Direito e natureza”, Kelsen traça uma distinção entre ser e dever-ser, ou, para falar em termos menos abstratos, entre as coisas como são e as coisas como devem ser, que desempenha dois papéis distintos, mas igualmente cruciais, na sua concepção do Direito:
a) Em primeiro lugar, a distinção serve para diferenciar entre duas modalidades de estudo do direito: do direito como ele é e do direito como ele deve ser;
b) Em segundo lugar, a distinção serve para diferenciar entre o reino dos fatos, relacionado ao ser, e o reino das normas, relacionado ao dever-ser.
A primeira distinção é de natureza epistemológica. Kelsen distingue, na verdade, entre descrição e avaliação. O que Kelsen recomenda é um estudo do direito como ele é no sentido de um estudo descritivo, de um exame que esclareça o que o direito vigente é e estabelece, sem confundir-se com nem ser influenciado por avaliações a respeito do caráter moralmente correto ou incorreto e politicamente útil ou nocivo dos conteúdos particulares postos pelas normas jurídicas. Kelsen propõe, portanto, um estudo não-avaliativo do direito, um estudo que possa informar, de modo objetivo e neutro, qual o direito vigente e o que ele diz.
A segunda distinção é de natureza ontológica. Kelsen distingue, agora, entre fatos e normas. Tendo um conceito mais ou menos ingênuo de “fato”, como, digamos, aquilo que ocorre no mundo, Kelsen se dedica mais ao esclarecimento da sua noção de norma, mediante uma nova distinção, dessa vez entre dever-ser subjetivo e dever-ser objetivo. Segundo Kelsen, o dever-ser é sempre produto de uma vontade. Em última instância, Kelsen identifica aquilo que deve ser com aquilo que alguém quer que seja, mais especificamente, com aquilo que alguém quer que outro alguém faça. Se alguém quer que certa pessoa faça certa coisa, mas essa pessoa não tem nenhuma obrigação de fazer o que a primeira quer que ela faça, então o querer da primeira pessoa significa apenas um dever-ser subjetivo, quer dizer, significa apenas que ela quer que certa pessoa faça certa coisa e que, por isso, ela pensa que essa pessoa deve fazer essa certa coisa. Se, além disso, a primeira pessoa tem alguma autoridade sobre a segunda ou a segunda pessoa tem alguma obrigação de fazer o que a primeira quer que ela faça, então o querer da primeira pessoa significa não apenas um dever-ser subjetivo, mas também um dever-ser objetivo, quer dizer, não apenas a primeira pessoa quer que a segunda faça certa coisa e, por isso, pensa que ela deve fazer essa certa coisa, mas também essa segunda realmente deve fazer essa coisa.
Essa conexão entre querer e dever-ser é muita duvidosa em Kelsen. Em primeiro lugar, a distinção entre dever-ser subjetivo e dever-ser objetivo parece forçada. Se aquilo que eu penso que o outro deve fazer fosse uma modalidade de dever-ser, então aquilo que eu penso que o outro faz seria também uma modalidade de ser, digamos, um ser subjetivo. Mas, assim como um ser subjetivo (uma suposição do que ocorre) absolutamente não é um ser em nenhum sentido da palavra, da mesma maneira uma cogitação pessoal sobre o que a outra pessoa deve fazer não é um dever-ser em nenhum sentido. Se houver um dever-ser, esse dever-ser é objetivo, e o que Kelsen chama de dever-ser subjetivo seria um mero desejo ou mera opinião de que outro deve fazer certa coisa, sem relação direta com a circunstância de que o outro realmente deva fazer aquela coisa.
Em segundo lugar, parece duvidoso que, toda vez que uma primeira pessoa quer que uma segunda faça certa coisa, a primeira pense que a segunda deve fazer aquela coisa. Não há nada de contraditório no enunciado: “O que eu queria que ela fizesse era justamente o que ela não devia de modo algum fazer”. Ao contrário, esse enunciado é completamente inteligível e consistente, não levantando qualquer problema lógico. Pode-se querer que uma pessoa faça certa coisa e saber, ao mesmo tempo, que ela não deve fazê-lo, ou se pode querer que uma pessoa não faça certa coisa e saber, ao mesmo tempo, que ela deve fazê-lo. A conexão entre querer que uma pessoa faça certa coisa e pensar que essa pessoa deve fazer essa certa coisa, se é que existe, não é tão direta quanto Kelsen sugeriu.
Kelsen sustenta que o direito, enquanto conjunto de normas, pertence ao reino do dever-ser, mas o estudo do direito, enquanto orientado pela teoria pura que propunha, deveria estudá-lo como ele é, e não como deve ser.
a) Em primeiro lugar, a distinção serve para diferenciar entre duas modalidades de estudo do direito: do direito como ele é e do direito como ele deve ser;
b) Em segundo lugar, a distinção serve para diferenciar entre o reino dos fatos, relacionado ao ser, e o reino das normas, relacionado ao dever-ser.
A primeira distinção é de natureza epistemológica. Kelsen distingue, na verdade, entre descrição e avaliação. O que Kelsen recomenda é um estudo do direito como ele é no sentido de um estudo descritivo, de um exame que esclareça o que o direito vigente é e estabelece, sem confundir-se com nem ser influenciado por avaliações a respeito do caráter moralmente correto ou incorreto e politicamente útil ou nocivo dos conteúdos particulares postos pelas normas jurídicas. Kelsen propõe, portanto, um estudo não-avaliativo do direito, um estudo que possa informar, de modo objetivo e neutro, qual o direito vigente e o que ele diz.
A segunda distinção é de natureza ontológica. Kelsen distingue, agora, entre fatos e normas. Tendo um conceito mais ou menos ingênuo de “fato”, como, digamos, aquilo que ocorre no mundo, Kelsen se dedica mais ao esclarecimento da sua noção de norma, mediante uma nova distinção, dessa vez entre dever-ser subjetivo e dever-ser objetivo. Segundo Kelsen, o dever-ser é sempre produto de uma vontade. Em última instância, Kelsen identifica aquilo que deve ser com aquilo que alguém quer que seja, mais especificamente, com aquilo que alguém quer que outro alguém faça. Se alguém quer que certa pessoa faça certa coisa, mas essa pessoa não tem nenhuma obrigação de fazer o que a primeira quer que ela faça, então o querer da primeira pessoa significa apenas um dever-ser subjetivo, quer dizer, significa apenas que ela quer que certa pessoa faça certa coisa e que, por isso, ela pensa que essa pessoa deve fazer essa certa coisa. Se, além disso, a primeira pessoa tem alguma autoridade sobre a segunda ou a segunda pessoa tem alguma obrigação de fazer o que a primeira quer que ela faça, então o querer da primeira pessoa significa não apenas um dever-ser subjetivo, mas também um dever-ser objetivo, quer dizer, não apenas a primeira pessoa quer que a segunda faça certa coisa e, por isso, pensa que ela deve fazer essa certa coisa, mas também essa segunda realmente deve fazer essa coisa.
Essa conexão entre querer e dever-ser é muita duvidosa em Kelsen. Em primeiro lugar, a distinção entre dever-ser subjetivo e dever-ser objetivo parece forçada. Se aquilo que eu penso que o outro deve fazer fosse uma modalidade de dever-ser, então aquilo que eu penso que o outro faz seria também uma modalidade de ser, digamos, um ser subjetivo. Mas, assim como um ser subjetivo (uma suposição do que ocorre) absolutamente não é um ser em nenhum sentido da palavra, da mesma maneira uma cogitação pessoal sobre o que a outra pessoa deve fazer não é um dever-ser em nenhum sentido. Se houver um dever-ser, esse dever-ser é objetivo, e o que Kelsen chama de dever-ser subjetivo seria um mero desejo ou mera opinião de que outro deve fazer certa coisa, sem relação direta com a circunstância de que o outro realmente deva fazer aquela coisa.
Em segundo lugar, parece duvidoso que, toda vez que uma primeira pessoa quer que uma segunda faça certa coisa, a primeira pense que a segunda deve fazer aquela coisa. Não há nada de contraditório no enunciado: “O que eu queria que ela fizesse era justamente o que ela não devia de modo algum fazer”. Ao contrário, esse enunciado é completamente inteligível e consistente, não levantando qualquer problema lógico. Pode-se querer que uma pessoa faça certa coisa e saber, ao mesmo tempo, que ela não deve fazê-lo, ou se pode querer que uma pessoa não faça certa coisa e saber, ao mesmo tempo, que ela deve fazê-lo. A conexão entre querer que uma pessoa faça certa coisa e pensar que essa pessoa deve fazer essa certa coisa, se é que existe, não é tão direta quanto Kelsen sugeriu.
Kelsen sustenta que o direito, enquanto conjunto de normas, pertence ao reino do dever-ser, mas o estudo do direito, enquanto orientado pela teoria pura que propunha, deveria estudá-lo como ele é, e não como deve ser.
Comentários
que complicado!
abraços!
Sua visão de ciência me parece um tanto limitada. Por que, afinal, o modelo de saber das ciências exatas e naturais deveria se impor como o único, aquele que define por excelência o fazer científico? Se nos perguntarmos qual o saber sobre as normas jurídicas que conseque apreendê-las de maneira mais completa, sistemática e prática ao mesmo tempo, duvido que consigamos uma alternativa melhor que a atual ciência do direito. Sendo assim, que lhe falta para ser ciência? Fórmulas? Experimentos? Predições? Consensos? Cumulatividade? Isso não é o mesmo que dizer que os gatos não são animais de verdade porque não latem? Não é exigir de um saber um formato que não lhe corresponde e, em seguida, negar-lhe a status de validade porque não alcança esse padrão indevido?
O que não quer dizer que concorde com você. Peguemos os dois principais epistemólogos das ciências naturais da segunda metade do Séc. XX: Sir Karl Popper disse que fazer ciência tinha a ver com identificar problemas, propor e testar hipóteses e substituir hipóteses refutadas por outras que resistam (até o momento) a refutação; Thomas S. Kuhn disse que as comunidades científicas partilham paradigmas, pressupostos comuns, formas padronizadas de fazer as perguntas e de propor as respostas, como se todos os cientistas juntassem peças de um mesmo quebra-cabeça. Ambos retiram sua inspiração da física, é verdade, mas não me parece que nenhuma das duas descrições lance um desafio significativo ao direito.
Digamos que um juiz se veja diante de um caso em que seria injusto dar a certa pessoa o mesmo tratamento que se dá a todas as demais, porque essa pessoa (uma gestante, um idoso, um deficiente físico etc.) claramente não se encontra na mesma situação das demais. Ele sabe que seria mais justo dar a essa pessoa um tratamento mais benéfico, mas sabe ao mesmo tempo que vige no ordenamento jurídico a que está submetido uma norma geral de igualdade de tratamento. Essa norma é suficientemente importante para não ser sacrificada e, portanto, a única maneira de tomar aquela decisão que ele considera a mais justa naquele caso é encontrar alguma interpretação ou argumento que torne possível a conciliação entre o tratamento mais benéfico para a pessoa desfavorecida e o norma geral de igualdade. Agora digamos que ele encontre o argumento que procura, que ele, suponhamos, alegue que a igualdade não deve ser exatamente a de tratamento, mas a de respeito e consideração, e que, em alguns casos, quando a situação de uma pessoa é mais desfavorecida que a das outras, tratá-la com igual respeito e consideração exige levar em conta sua situação especial e, em vista dela, prover-lhe um tratamento correspondentemente proporcional. Com essa interpretação da igualdade, ele poderia perfeitamente conciliar a solução que julgava ser a mais justa com a norma que era importante o bastante para não ser sacrificada.
Não vejo diferença significativa entre isso que esse juiz teria feito e a proposição e teste de hipóteses de Popper e a resolução de quebra-cabeças de Kuhn. A diferença só surge se se alimenta o preconceito de que, nas coisas humanas, não existe objetividade, de que toda resposta pode ser isso ou aquilo, certa ou errada, conforme for a vontade e o interesse dos homens. À luz dessa visão cético-relativista sobre os assuntos humanos (que, ironicamente, era exatamente a visão de Kelsen e o motivo por que ele pensava que a certeza no direito só era possível através de um formalismo artificial e auto-suficiente), de fato, nenhum conhecimento das coisas humanas e culturais poderia se candidatar ao patamar científico. Mas essa visão cético-relativista é tão banal que não merece crédito a não ser das ondas pós-modernistas e dos parasitas new age do pensamento contemporâneo.
A cientificidade do direito está em discussão, e junto com ela o conceito mesmo de ciência e os requisitos do saber científico. Sugiro que liste com mais precisão os seus argumentos contra a cientificidade do direito e que os conecte mais intimamente a uma visão declarada de ciência que exclua o direito de seu âmbito de referência.
PS: Popper afastou-se muito dessa idéia inicial que você aventou em seu comentário. Bem, Popper também o foi a seu tempo.
qual seria o problema do valor e o que é valor para Kelsen???
o que vc quer passar para nós leitores?
Escrevi algo sobre Ciência (o que eá é) em: http://www.netlegis.com.br/indexRJ.jsp?arquivo=detalhesArtigosPublicados.jsp&cod2=1843.
Espro que contribua para o diálogo.
Nádia, gostaria de conhecer melhor o seu pensar, se possível (moises1962@gmail.com), me informe sobre seus escritos.
Grato a todos,
Osório Barbosa
As demais questões discutidas pelo Profº e a Nádia são bem profundas e necessitam de muito conhecimento acumulado para se discutir, não querendo entrar no mérito de quem está certo ou não, mas na minha opinião, Direito sim é ciência, pois mesmo ele sendo fruto do fato social como citou a Nádia não limita-se somente a fatos passados. Pois nem toda lei é criada após a conduta, ela também pode ser criada a luz de uma possível conduta e isso em minha opinião também é fazer ciência. Não sei se fui claro ao que quis dizer, mas chega perto da idéia do Juiz aplicando a justiça no caso concreto exemplificado pelo professor.
Gostei muito desse dialogo, muito construtivo. Parabéns a todos pelo grande conhecimento.
Primeiro, antes de fazer meu comentário, quero esclarecer que sou um simples estudante do 3º semestre, bolsista do Prouni, que se apaixonou pelo Direito. Na minha pouca sabedoria, entendo que seja sim uma ciência, das mais relevantes para a compreensão do que é o convívio social. Eu penso que não ha como afastar o direito da Filosofia, pois se cruzam constantemente.
Mas minha observação se refere a uma parte especifica do seu texto. Seria possível que Kelsen estaria dizendo que uma pessoa deseja que outra lhe faça algo apenas e exclusivamente no âmbito do Direito, por essa pessoa entender possuir um direito específico, e aquela pessoa, de quem deseja que lhe faça algo, possui o poder de fazer?
Nesse sentido não entraria o questionamento sobre o certo ou errado daquilo que se deseja, mas apenas a aplicação de um direito que parece existir na mente daquele que deseja que o outro lhe faça algo. E talvez esse direito não exista apenas na mente, mas possivelmente pode ser um direito real, que tem sido levianamente ignorado.
É um conceito razoável?
Estou no caminho do Direito, e um simples termo visto em um livro de introducao ao Direito Civil me fez chagar ate esta postagem e abrir mil horizontes. Estou euforico com tanta coisa!
Obrigado a todos...
Professor, poderia eu entrar em contato com o senhor para sanar duvidas ou conversar? (dentro da sua possivel disponibilidade é claro)
Respeitosamente Reger Teles.