Início da vida: uma questão biológica?

Dedicado a Diego e Clayton

Costuma-se dizer que a decisão (legislativa e judicial) relativa à disciplina do abortamento e das experiências com células-tronco embrionárias, para citar apenas dois temas bioéticos contemporâneos, depende da exata determinação de quando começa a vida humana e que esta, completam, é uma questão para a qual a biologia, em comparação com a política e com o direito, está em melhores condições de fornecer uma resposta bem informada. Pois bem, gostaria de defender o ponto de vista de que nenhuma dessas duas afirmações é verdadeira, pois tais decisões poderiam muito bem ser independentes da determinação do início da vida humana e, mesmo que dependessem de tal determinação, poderiam muito bem ser independentes da palavra da biologia. Por fim, argumentarei que, por trás do argumento biológico, se esconde na verdade um argumento religioso cristão, sem o qual a primazia do biológico dificilmente poderia ser justificada. Então vamos a cada um dos argumentos:

1. A idéia de que a decisão sobre abortamento e uso de células-tronco embrionárias depende da exata determinação de quando começa a vida humana pressupõe a idéia de que só seria possível abortar um feto ou extrair células-tronco de um embrião que ainda não estivesse "vivo". Pressupõe, portanto, a idéia de que a "vida", um vez assinalada a certo ser, se torna um valor absoluto, inegociável, irrelativizável. Ora, argumentarei em contrário com base em exemplos do próprio direito positivo brasileiro: homicídio em legítima defesa, homicídio em estado de necessidade, pena de morte em caso de guerra declarada e contra inimigo estrangeiro, abortamento para salvar a vida da mãe, abortamento em caso de gestação resultante de estupro. Ora, em todos esses casos, se autoriza o sacrifício do bem jurídico "vida" em favor de algum outro bem jurídico, que pode ser a própria vida de outra pessoa (como é em alguns, mas não em todos os casos, de legítima defesa e de estado de necessidade e como é também no caso do abortamento para salvar a vida da mãe), mas também pode ser outro bem jurídico estranho à vida (a segurança pública, no caso da pena de morte em guerra, e a integridade psicológica da mãe, no caso do abortamento em gestação resultante de estupro). O que todos esses exemplos mostram é que, qualquer que seja o alto valor atribuído ao bem jurídico "vida", ele não é tão alto que o torne absoluto, do contrário nenhuma daquelas hipóteses seria possível. Por consequência, se o bem jurídico "vida" não é absoluto, então a decisão em favor do abortamento e do uso de células-tronco embrionárias poderia muito bem ocorrer mesmo que o feto ou o embrião em questão fosse considerado "vivo", bastando, para isso, fazer uma opção, como nos exemplos acima, pelo sacrifício do bem jurídico "vida" em nome de outro bem jurídico considerado no caso mais importante, seja a vida mesma de outra pessoa ou outro qualquer. Sendo assim, a exata determinação de quando começa a vida humana não precisaria ser decisiva para as decisões (legislativas e judiciárias) sobre aqueles assuntos.

2. Contudo, mesmo que se considerasse o bem jurídico "vida" como absoluto e que se considerasse que, uma vez declarados "vivos" o feto e o embrião, o abortamento e o uso de células-tronco embrionárias não seriam mais possíveis, não se seguiria disso que a palavra final coubesse à biologia. Isso porque "vida" em sentido biológico e "vida" em sentido jurídico são dois conceitos diferentes. Começa-se por um fato banal: nem toda vida biológica é juridicamente tutelada, bastando lembrar da vida biológica de todos os milhões de outros seres vivos distintos do ser humano. Se amanhã o legislador decidisse proteger o bem jurídico "vida" dos animais domésticos, como cães, gatos, peixes, passarinhos, porquinhos-da-índia, hamsters etc., ele poderia, e seria uma decisão exclusivamente política, na vigência do mesmo conhecimento biológico de antes, portanto, sem que nenhuma descoberta biológica revolucionária tivesse vindo "autorizá-la". Da mesma maneira, quando um regime genocida declara disponíveis as vidas de milhares ou milhões de seres humanos, pelo fato de pertencerem a certa etnia ou a certa nacionalidade, o faz sem que nenhuma descoberta biológica tenha vindo em seu socorro revelar que, na verdade, tais pessoas não estão "vivas". (No caso do Nazismo, houve o concurso de supostas descobertas biológicas sobre superioridade e inferioridade raciais, mas, ainda assim, os membros das "raças inferiores" eram considerados "vivos"). Assim, o bem jurídico "vida", que enseja proteção especial, embora não, como vimos, absoluta, não é idêntico ao fato biológico "vida", podendo ser que ambos se orientem por referenciais completamente distintos e não coincidentes. O que ocorre atualmente em nosso direito positivo é que se considera que, no que se refere à proteção da vida de um ser humano, o critério para auferir o bem jurídico "vida" e o critério para auferir o fato biológico "vida" deveriam coincidir, o que, é claro, não é um critério exatamente "errado", pois é legítimo como qualquer outro, mas quero apenas que se reconheça que é um critério entre outros, e não o único possível, nem necessariamente o melhor de todos os disponíveis. E, o que é mais importante: A adoção do critério biológico é, em si mesma, uma escolha política, e não biológica. As descobertas biológicas só têm valor jurídico se uma decisão política atribuir esse valor a elas. Não se trata de um valor que tenham "em si mesmas".

3. No entanto, uma das principais razões em favor do uso do critério biológico para auferir o bem jurídico "vida" no caso do ser humano é a confluência que esse critério apresenta com o critério religioso. Afinal, por que considerar que, uma vez que houve o "influxo da vida" sobre certo agrupamento celular, já deve estar ali presente a proteção juridica? Que sentido faz isso, a não ser que se considere toda manifestação, por mínima que seja, da vida humana como "sagrada"? Não se deveria tal perspectiva a que, para a Igreja Católica, o momento do "influxo" da alma no corpo é o momento da concepção? Não se deveria também ao pensamento neoescolático de que, no sinolo alma-corpo, a alma é a forma do corpo, princípio ativo sem o qual está ausente o movimento e, por conseguinte, o desenvolvimento? Não seria a defesa apaixonada do critério biológico apenas uma continuação, aparentemente laica (porque a aparência laica é requisito de força persuasiva no jogo de poder político contemporâneo) da defesa apaixonada do critério religioso? Não haveria nessa confluência entre o biológico e o religioso alguma coisa do naturalismo antigo, que vê na natureza a criação de Deus e nos fenômenos naturais a manifestação de Seu poder, de Sua vontade e de Seu mistério? Vale a pena pensar a respeito, e para ajudar a pensar vai a ajuda do seguinte expediente mental: Sem esse pano de fundo religioso, que sentido faz o uso do critério estritamente biológico como marco da proteção jurídica da vida?

Aceitos os argumentos 1 e 2, concluiríamos que: 1. Precisamos tomar a decisão política sobre qual o melhor critério (se o biológico, ou outro) para determinar se o feto e o embrião estão "vivos" ou não em sentido jurídico; 2. Precisamos decidir se o fato de, segundo o critério que tivermos escolhido, o feto e o embrião estarem "vivos" é ou não um fator determinante contra o abortamento e o uso de células-tronco embrionárias, o que dependerá da consideração de quais são os outros bens jurídicos que estão em jogo e sobre o "peso", maior ou menor que a "vida", que eles teriam nos casos concretos.

Comentários

Nicolai Pessoa disse…
A questão do abortamento para mim tem maior relevância com relação a esta questão do que o uso de células-tronco. O uso de células tronco deveria ser regulamentado pela lei (como toda ação humana deveria), mas, não proibido e alvo de tantas especulações e intrigas dos nossos políticos. Quanto ao aborto entra uma questão muito mais complicada e grave, a banalização da vida humana. Acho que a legislação brasileira quando permite o aborto nos casos de risco de vida da mãe ou gravidez causada por estupro já abrange todos os momentos em que o aborto deve e pode ser usado. Caso contrário, numa manhã de um dia qualquer uma jovem brasileira descobre que esta grávida de um sujeito do qual ela nem se lembra mais, de uma balada qualquer. Então, acobertada por uma possível lei, ela pratica um aborto. É uma situação onde o bem jurídico "vida" deve prevalecer. Ou daremos o direitos a jovens, na depravada sociedade brasileira, de brincar com concepção humana. Se a "vida" não tem valor nenhum "em si" e só possui o que o atribuímos concensualmente então qualquer coisa vale. Devemos desvelar o valor que a vida tem e garantir lhe assim o direito que lhe é justo. Um comentário a laicidade de nosso país: todas as cédulas de real tem a "oração", Deus seja louvado. Assim vemos um país laico.
Anônimo disse…
Caro Volpi, agradeço pela sua visita e pelo seu comentários, respeito a sua opinião, mas preciso dizer que ela está calcada no exato argumento do "valor em si" que quero derrubar (aliás, não posso sequer compreender o que "valor em si" possa querer dizer ou como alguma coisa teria um "valor em si"). E você acrescenta outro argumento que, na minha opinião, está equivocado: Se a vida só tem o valor que atribuímos consensualmente a ela, então tudo vale. Por que seria assim? Imagine seres humanos razoáveis engajados numa discussão razoável sobre o valor que consideram correto atribuir à vida humana. Ora, tais pessoas certamente não atribuíriam um valor qualquer a ela, mas sim um valor ponderado, refletido, que espelhasse suas melhores crenças e conclusões a respeito do assunto. Consensual quer dizer razoável, e não arbitrário. Quando consideramos que consensual é arbitrário, tendemos a supor que é preciso uma instância ontológica ou metafísica para frear os abusos da discussão prática. É disso mesmo que discordo. Abraço!
Nicolai Pessoa disse…
As coisas existem, e só podemos lhes atribuir valores na medida dos valores que a coisa pode receber. Caso contrário teríamos uma discrepância enorme entre o objeto e nossa opinião sobre ele. Mas, a mente humana é passível de erros e nem sempre nosso consenso sobre algo condiz com este mesmo algo. Assim acho possível valores "em si" das coisas, pois, elas "são" de um modo ou de outro e nós temos esquemas para conhecer este "ser" das coisas. No entanto quando critico a consensualidade o faço movido pelo impeto de descobrir o valor que as coisas tem, no lugar do valor que atribuimos a coisa por ponderação, reflexão, conclusão ou crença. Vemos inúmeros casos onde este tipo de abordagem só produz equívocos (a democracia nossa de cada dia é um exemplo) justamente por negar as coisas "em si".
Anônimo disse…
Volpi, vamos examinar melhor o conceito de "valor em si". Do ponto de vista conceitual, valor de alguma coisa é certo montante de estima ou importância que se atribui a esta coisa. Essa estima ou importância pode ser atribuída a ela por várias razões, que variam desde sua empregabilidade na satisfação de necessidades humanas até o papel especial que desempenha na cultura daquela comunidade por um motivo qualquer. Assumir a hipótese de que algo tivesse "valor em si" seria supor que uma coisa tivesse valor independentemente do montante de estima ou importância que se atribuísse a ela, ou, em outras palavras, para que fique mais claro o paradoxo, seria supor que uma coisa tivesse valor independentemente de ser valorizada. Essa hipótese é esdrúxula porque se assemelha à hipótese de que algo pudesse ter som sem que ninguém o ouvisse e algo pudesse ter cheiro sem que ninguém o sentisse. É um paradoxo porque o próprio conceito de som e de cheiro implicam um pólo ativo (que emite) e um pólo passivo (que percebe), e o mesmo ocorre com o conceito de valor, que implica um pólo ativo (que valora) e um pólo passivo (que é valorado). Se o que você quiser dizer com seu argumento é que, para ser valorado, o objeto precisa ter certas popriedades ou características, que não são inventadas ou supostas pelos sujeitos, mas são encontradas no próprio objeto, estou disposto a concordar com esse ponto, desde que com isso não se queira dizer que existam certas propriedades ou características que atribuam valor a um objeto "automaticamente", isto é, sem que tais propriedades ou características desempenhem um papel relevante nas práticas culturais de certo conjunto de homens. Não existem propriedades ou caracteristicas valiosas em si, embora existam propriedades e características valiosas em todas as culturas, devido ao papel que desempenham nas práticas de todas elas. Sendo assim, o reconhecimento de que certas propriedades ou características dos objetos servem de suporte fático necessário para que sejam valorizados pelos sujeitos não implica que tais objetos tenham valor "em si", mas apenas que tenham valor, atribuído pelos sujeitos, em razão de suas propriedades e características desempenharem um papel relevante em certas práticas culturais daqueles sujeitos. Bastaria que se imaginasse uma cultura em que tais propriedades e características não desempenhassem tal papel para que tais objetos deixassem de ter valor, apesar de se manterem os mesmos.
Fernanda disse…
"Assim acho possível valores "em si" das coisas, pois, elas "são" de um modo ou de outro e nós temos esquemas para conhecer este "ser" das coisas." (Volpi)
Nhu, criar coragem para argumentar também... (loading)... ok.
Em concordância com que o professor André disse, também não considero existir um “valor em si” das coisas. Um objeto qualquer só existe a partir do momento em que alguém (observador) é capaz de conceber essa existência (seja “amor”, “mesa”, “capitalismo”...). Logo, não posso dizer que haja alguma coisa que existem em si, e que, por exemplo, sempre existira, sendo descobertas quando pensadas pela primeira vez. Neste sentido considero não ser possível algo conceber em si mesmo um valor. Qualquer valor existente não parte do objeto, e sim daquele observador que o concebe como tal. O “valor” somente existe a partir do momento que alguém valora, lhe dá sentido, conceito, utilidade, razão etc. Isso explica o porquê dos conceitos dos valores não coincidirem em sua totalidade, conforme concebidos por pessoas diversas, as quais podem perceber de forma diferente o objeto, e portanto, dar-lhe um valor único em comparação ao de outro observador. Também explica as coincidências, os “pontos em comum”, dos valores de determinado tempo, território ou sociedade, como explicou o professor (acho). Bem, isso se dá por conta das identidades entre os observadores, entre aqueles que “valoram”, e não da coisa em si. Identidades estas que são culturais, lingüísticas, históricas, sociais, econômicas, religiosas, entre muitas outras, que por se repetirem nas pessoas, repetem-se, pois, naquilo que elas concebem acerca das coisas.

Waa... bem, é o que penso até o momento.

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