Sobre a Moral em Kant (III)

Resposta ao comentário de Gisele, ao qual desde já agradeço.

A questão suscitada acerca do dever-ser precisa de uma dupla contextualização: uma para a filosofia de Kant e outra para a filosofia contemporânea. Na filosofia de Kant, dever-ser é uma necessidade prática, ou seja, a obrigação de agir por respeito a uma lei. Formulada assim, a definição de dever-ser parece aplicar-se apenas para o dever moral, mas seria precipitado pensar assim. Vamos retomar as considerações acerca dos imperativos.

Os imperativos podem ser hipotéticos ou categóricos. Os hipotéticos são do tipo “Se queres Y, faze X”, sendo obrigatórios apenas para aqueles que desejam o fim a que se prestam, e os categóricos são do tipo “Faze X”, sendo obrigatórios para todos. Contudo, existem dois tipos de imperativos hipotéticos: as regras técnicas e os conselhos de prudência. Um imperativo hipotético é uma regra técnica quando se presta um fim particular e contingente (por exemplo, “Se queres passar no vestibular, estuda com afinco”) e é um conselho de prudência quando se presta para aquele fim que é universal e necessário: ou seja, a felicidade (por exemplo, “Se queres ser feliz, cultiva boas amizades”). É que nenhum homem pode deixar de querer a felicidade, porque qualquer que seja a outra coisa que possa querer, a quer sempre para ser mais feliz, e não menos. Os imperativos categóricos, como sabemos, não prescrevem meios para fins, mas sim deveres absolutos, que se impõem para todos como obrigatórios.

Assim, temos três imperativos: regras técnicas, conselhos de prudência e a lei moral. A questão agora é: Todos três são leis? No sentido de leis morais, evidentemente que não, porque só o pode ser aquela máxima universal e necessária, que jamais tem estrutura teleológica, nem para um fim particular e contingente, nem para um fim universal e necessário.

Contudo, nada obsta que se possa tratá-los como leis práticas. Se a razão prática determina a vontade a partir de máximas, e se essas máximas são de três tipos, não há porque não supor que os três tipos de máximas – e não apenas a lei moral – pertencem à razão prática. Assim, a relação entre estudar com afinco e passar no vestibular é uma lei universal e necessária, assim como a relação entre cultivar boas amizades e ser feliz. Esses dois tipos de leis práticas – que hoje em dia se poderia chamar de lei pragmática e lei ética, respectivamente – não conseguem alcançar a universalidade e necessidade prática (não são obrigatórias para todos os seres racionais), mas são dotadas de universalidade e necessidade teórica (prescrevem meios sem os quais é impossível atingir os fins respectivos).

Por isso, a lei moral, as regras técnicas e os conselhos de prudência são leis práticas, embora só a primeira seja uma lei moral. Agir em conformidade com qualquer um deles é agir em conformidade com máximas da razão prática, é agir em conformidade com leis práticas. Por isso, todos eles são dotados de dever-ser, embora seja um dever-ser relativo ou absoluto conforme o caso. Se não, vejamos:

a) Regra técnica: “Se queres passar no vestibular, estuda com afinco”. Ora, passar no vestibular é um fim particular e contingente, de modo que posso querê-lo ou não. Mas, sob a condição de que eu o queira, estou racionalmente obrigado a agir em conformidade com aquela lei prática. Não seria racional querer passar no vestibular e não estudar com afinco. É um dever relativo, porque condicionado a um querer contingente.


b) Conselho de prudência: “Se queres ser feliz, cultiva boas amizades”. Ora, ser feliz é um fim universal e necessário, de modo que não posso deixar de querê-lo. Por isso, enquanto ser que não pode deixar de desejar a felicidade (e não enquanto ser racional), estou racionalmente obrigado a agir em conformidade com aquela lei prática. Não seria racional querer ser feliz e não cultivar boas amizades. É um dever relativo, não porque está condicionado a um querer contingente, e sim porque ainda está condicionado a alguma coisa.

c) Lei moral: “Age de modo que possas querer que a máxima de tua ação se converta numa lei universal”. Aqui não se trata de fins nem de meios. Trata-se de um dever racional que se impõe para todo ser racional. Mesmo um ser racional diverso do homem, um que não desejasse a felicidade, estaria ainda assim obrigado pela lei moral. É um dever absoluto, porque não condicionado.

Assim, diferenciando deveres relativos e deveres absolutos, podemos conceber que ambos participam do dever-ser, mas não da mesma maneira. Uns valem para todos os que desejam um certo fim, outros para todos os homens e outros ainda para todos os seres racionais. As regras técnicas devem ser limitadas pelas máximas de prudência e pela lei moral (não é racional, em busca de algum fim menor, nem que eu sacrifique minha felicidade, nem que eu viole uma lei moral). Os conselhos de prudência devem ser limitados pela lei moral (não é racional que, em busca da minha felicidade, eu viole uma lei moral).


Na filosofia contemporânea, especialmente na de Habermas, o reconhecimento da possibilidade de orientações éticas serem dotadas de dever-ser é ainda mais fácil.

Primeiro: Agora não existe um “reino do dever-ser”, um “mundo inteligível” etc,, do qual as coisas façam parte ou não. O que existem são enunciados normativos, quer dizer, enunciados de dever-ser. Assim, tanto “Deves estudar com afinco para passares no vestibular”, quanto “Deves cultivar boas amizades para seres feliz” ou ainda “Deves agir conforme uma lei universal” são enunciados do mesmo tipo: aquele tipo que, ao invés de dizer que o sujeito faz isso ou aquilo, diz que ele deve fazer isso ou aquilo, do tipo que, ao invés de descrever a conduta de um sujeito, a prescreve. Todos são enunciados de dever-ser.

Segundo: O âmbito da razão prática é tripartido em pragmática, ética e moral. Usa-se de uma razão pragmática quando se seleciona os meios adequados para o fim que tem em vista. Usa-se de uma razão ética quando se leva adiante um projeto de vida bem-sucedido à luz de uma auto-compreensão e de uma auto-projeção. E usa-se de uma razão moral quando se age em conformidade com um dever universalmente obrigatório.

Terceiro: Dessa maneira, os enunciados normativos podem ser justificados de três diferentes maneiras: (1) segundo uma razão pragmática, mostrando que a ação que o enunciado prescreve é racional (eficaz) em relação ao fim pretendido; (2) segundo uma razão ética, mostrando que a ação que o enunciado prescreve é racional (autêntica) em relação a uma certa concepção de vida boa; e (3) segundo uma razão moral, mostrando que a ação que o enunciado prescreve é racional (correta) em relação a um dever universal.

Quarto: Uma vez justificados, todos os enunciados normativos – pragmáticos, éticos ou morais – estão autorizados a dizer o que dizem, ou seja, a dizer que um certo sujeito deve agir assim ou assim. Mas esse “dever-ser” não é do mesmo tipo para todos eles. Se o dever-ser pragmático contraria o dever-ser ético (“Se queres ganhar dinheiro, deves fazer o que dá certo e não o que te faz feliz”) ou o dever-ser moral (“Se queres obter prorrogação do teu prazo, deves mentir que estavas doente”), ele deixa de estar justificado. Da mesma maneira, se o dever-ser ético contraria o dever-ser moral (“Se queres ser feliz, nunca digas a verdade sobre os defeitos dos outros”), ele também deixa de estar justificado.


Quinto: Se o dever-ser se limitasse ao dever-ser moral, então a razão prática seria impotente para nos conduzir pela vida. Mesmo quando respeitados todos os limites morais, ainda restam infinitos projetos de vida possíveis. Se admitimos que é mais racional escolher meios eficazes e viver uma vida autêntica do que não fazê-lo, então admitimos que é justificado dizer que devemos escolher meios eficazes e que devemos viver autenticamente. Isso não dota o dever-ser pragmático e o dever-ser ético da mesma autoridade do dever-ser moral – que goza de absoluta prioridade –, mas lhes dá, sim, alguma autoridade, ainda que relativa e condicionada ao respeito às normas morais.

Comentários

Anônimo disse…
Obrigada André. Perceba que vc reforçou aquilo que havia te dito em uma de nossas 859 mil conversas. O que fica no plano do dever-ser, no final de tudo, é o procedimento que confere validade às leis morais, para onde tudo retorna. Pois não só as leis morais só são válidas à luz deste procedimento, como as regras éticas e práticas. Em todo caso, que venha o Rabenhorst agora, rsrsrs.

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