Argumentação jurídica e hábitos mentais preargumentativos

Conta-se que, na Antiguidade, uma cidade longamente acostumada à tirania foi reorganizada do dia para a noite para ser uma democracia. O antigo palácio foi fechado e aposentado, substituído pela praça pública. Os sisudos símbolos de autoridade foram substituídos por símbolos novos e inspiradores de liberdade. Anunciava-se que dali em diante a antiga massa passiva e obediente de súditos, agora reapelidada de “povo”, seria subitamente convertida em titular único do poder político e em agente principal de decisão e mudança. Tudo se passava como se o Sol, que tinha visto a cidade submissa e tirânica no dia anterior, fosse agora, surpreso e confuso, encontrá-la livre e democrática no dia seguinte.

Contudo, como as transições psicossociais são mais lentas que as político-institucionais, no dia seguinte, na primeira reunião da recém-instituída assembléia do povo, entre as muitas leis aprovadas, quase todas por unanimidade e sem qualquer discussão, estava a punição com pena de morte a quem não participasse das votações, o açoitamento público dos que fossem vistos maldizendo o novo regime, a proibição de mudar-se de casa, contrair casamento ou assumir uma profissão sem autorização da assembléia e, para culminar, a eleição de um diretório, formado de um delegado e de dez assistentes de sua confiança, por ele indicados, dotado de poderes absolutos, que conduziria com mão de ferro aquela cidade à verdadeira liberdade e cidadania. Era, sem dúvida, a tirania que sobrevivia mais forte que nunca no espírito daquela (suposta) nova democracia.

Pois bem, essa anedota histórica ilustra um fenômeno que também se pode verificar no atual estado da ciência e do ensino do Direito.

Que o direito é atividade argumentativa é fato que ninguém nega, mas ao qual tampouco se costuma conferir a devida importância. Se, por um lado, se louvam as habilidades do jurista de construir e defender teses aceitáveis, por outro lado, se insiste em apresentar o direito como um quadro fixo e restrito de teses possíveis. Tudo se passa como se o caráter essencialmente argumentativo do direito já tivesse sido aceito pela razão, mas não tivesse ainda produzido as mudanças correspondentes nos níveis mais irracionais de crença e comportamento dos juristas. O mesmo jurista que se apresenta como defensor de uma epistemologia vanguardista, que estimula a indeterminação, a pluralidade, a interpretação, a relatividade, se revela, quando se passa do discurso à prática, um reprodutor obediente e disciplinado da epistemologia conservadora que diz ter superado, uma peça bastante ativa e confiável da engrenagem do positivismo jurídico.

Para ficar apenas num único exemplo, poderíamos falar que, uma vez que se admite o caráter argumentativo do direito, a noção de direitos subjetivos preexistentes ao processo judicial perde sentido. Existência, em direito, se significa algo, significa a situação em que os argumentos em favor da coisa em questão batem os argumentos em contrário, coisa que é impossível de verificar sem submetê-la a contraditório real ou hipotético. Não é possível, por exemplo, afirmar que tal sujeito tem propriedade sobre tal bem sem levar em conta a força relativa dos argumentos em que tal sujeito poderia apoiar-se para defender tal direito em juízo, em direto contraste com a força relativa e paralela dos argumentos que um possível contraditor poderia levantar em juízo para contestar aquele direito. Dizer que certo sujeito tem propriedade sobre tal coisa é na verdade dizer que os argumentos em favor desse direito são mais fortes que os argumentos por ora concebíveis em contrário, afirmação que permanecerá sempre provisória e falível, visto que a qualquer momento os argumentos em favor do direito podem ver-se atacados por argumentos contrários nunca antes concebidos, ou por argumentos já concebidos, mas redesenhados ou reforçados de modos até então desconhecidos. O status de um direito subjetivo é sempre dependente de sua defensabilidade em contraditório.

Esse exemplo revela apenas um dos inúmeros fatos que decorrem do caráter argumentativo do direito e que, por força de arraigados hábitos mentais preargumentativos, raramente são reconhecidos mesmo por quem defende mais vivamente a importância da argumentação jurídica. Por isso, qualquer discurso sobre argumentação jurídica dirigido a juristas precisa assumir para si não apenas a tarefa que lhe seria própria, a de lançar luz sobre as formas e esquemas básicos pelos quais pode se dar a construção e justificação de argumentos em direito, mas também uma tarefa adicional, a de revelar e incomodar os mecanismos inconscientes de reprodução da antiga, mas ainda pulsantemente viva, imagem preargumentativa do direito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo