Cruzada Cognitivista: Em Defesa da Imparcialidade do Juiz


Hoje em dia a maioria das abordagens do papel do juiz é cética a respeito de sua imparcialidade. Os argumentos para tal ceticismo se desenvolvem em duas linhas: a) a primeira é aceitar que seja possível ser imparcial, mas negar que os juízes de fato o sejam; b) a segunda é negar que seja possível ser imparcial e aceitar que os juízes de fato não o são. Nessa postagem tento refutar a linha de argumento b), que nega até mesmo a possibilidade de ser imparcial. Começo definindo imparcialidade de maneira tal que seja ao mesmo tempo normativamente aceitável e empiricamente alcançável. Em seguida, examino os argumentos que geralmente se usam para mostrar que é impossível ser imparcial. Tento provar que tais argumentos só fazem sentido usados contra uma versão desnecessariamente exigente de imparcialidade e que, confrontados com a versão mais modesta que ofereço, tais argumentos se mostram claramente insustentáveis. Espero assim contribuir para a restauração de padrões cognitivistas mínimos na concepção do papel do juiz e da decisão judicial.


1. Imparcialidade tem dois sentidos diferentes e complementares: um negativo, outro positivo. O sentido negativo é o de não comprometimento prévio com nenhuma das partes em litígio. O sentido positivo é o de capacidade de aplicação daquilo que é fixado pela lei para tomar uma decisão independentemente de quem seja favorecido ou prejudicado por essa decisão. Vista assim, a imparcialidade é tanto uma manifestação quanto um parâmetro da racionalidade prática. Pois bem, há uma maneira razoável e outra irrazoável de conceber essas duas exigências. A maneira irrazoável de conceber o não comprometimento prévio com nenhuma das partes é supor que seja preciso que nenhum dos elementos (gênero, etnia, origem, religião, classe, profissão, aparência, comportamento etc.) que compõem a identidade e a situação dessas partes tenha qualquer influência no julgamento do juiz a respeito de qual delas tem razão. A maneira razoável de conceber essa mesma exigência é admitir que tais influências existem e são até certo ponto inevitáveis, mas supor que seja preciso apenas que nenhuma possível influência daqueles elementos seja sozinha tão decisiva que afaste a correta aplicação da lei. De modo semelhante, a maneira irrazoável de conceber a capacidade de aplicar corretamente a lei independentemente de quem seja assim favorecido ou prejudicado é supor que há uma, e apenas uma, interpretação correta da exigência da lei, de modo que qualquer divergência interpretativa em relação a esse padrão único caia sob a pecha de desvio da imparcialidade do juízo. A maneira razoável de conceber essa exigência é admitir que há várias interpretações possíveis da lei e que, num espaço pluralista, é esperável que as pessoas divirjam sobre qual interpretação é a melhor, sem que tal divergência precise ser atribuída à má fé ou à parcialidade. Dessa forma, em vez de conceber a imparcialidade como a capacidade de não ser afetado por nenhuma influência estranha à lei e de aplicá-la segundo a sua única interpretação correta, uma concepção desnecessariamente exigente e, assim, irrealizável, é possível concebê-la, em termos mais modestos e realizáveis, como a capacidade de sobrepor-se às possíveis influências estranhas e de decidir a partir de uma das interpretações possíveis da lei.

2. Enquanto parâmetro, a imparcialidade não pode ser negada, pois quem nega a existência de um parâmetro de imparcialidade tem que mostrar que todas as decisões são parciais; contudo, como decisões parciais são aquelas que se desviam de um parâmetro de imparcialidade, é preciso que tal parâmetro exista para que, em comparação com ele, se possa dizer que as decisões foram parciais. Da mesma forma, o crítico que acusa as decisões de terem sido parciais e está, portanto, usando o parâmetro da imparcialidade, está com isso provando que é possível ser imparcial, pois, se ele mesmo, o crítico, não fosse imparcial, seria impossível para ele identificar os pontos em que as decisões se afastaram da imparcialidade. Só é possível para o crítico identificar a decisão parcial de um caso usando algum parâmetro do que seria para aquele mesmo caso uma decisão imparcial, de modo que o crítico, ao criticar a parcialidade da decisão, não apenas assume a existência de um parâmetro de imparcialidade, como prova, com sua própria crítica, que é possível julgar segundo aquele parâmetro. Vou tentar mostrar isso com dois exemplos:

a) Um crítico defende que é impossível ser imparcial e aduz como prova um caso em que, embora havendo na lei de certo lugar o reconhecimento do direito de greve, os juízes daquele lugar, comprometidos com as ideias e os interesses patronais, costumam aplicar a lei de forma distorcida e exageradamente severa para com os trabalhadores, procurando nas manifestações grevistas qualquer pequeno detalhe com base em que as possam declarar ilegais. Ora, o que fica claro nesse exemplo é que, para o crítico, os juízes do lugar em questão não estão aplicando corretamente a lei, pois, para esse crítico, as manifestações grevistas que esses juízes têm repetidamente declarado ilegais seriam, segundo a interpretação correta da lei, na verdade legais. Ora, isso quer dizer que é possível, sim, formar um juízo sobre o que seria a aplicação correta da lei (considerar as greves legais) e verificar, em comparação com esse juízo, que as aplicações que vêm ocorrendo (considerar as greves ilegais) não estão corretas. A própria crítica que o crítico formula prova que é possível decidir com imparcialidade, mesmo que, para aquela questão, o crítico constate que não seja isso (a decisão correta e imparcial) que até o momento tenha acontecido com mais frequência.


b) Um crítico sustenta que é impossível ser imparcial e aduz como prova a constatação, mediante pesquisa empírica, de que a maioria dos juízes brancos considera inconstitucional o sistema de cotas raciais para universidades públicas, enquanto a maioria dos juízes negros considera tal sistema perfeitamente constitucional. Segue-se daí, segundo o crítico, que a raça influencia a interpretação que se faz da constituição e que, portanto, não há imparcialidade na formação desse juízo. Tal conclusão, contudo, se baseia na hipótese de que haja uma única interpretação correta da constituição, a qual ou autorizaria ou proibiria o referido sistema de cotas, e à tal interpretação correta se deveria chegar sem que houvesse qualquer influência da raça na formação do juízo. Essas são ideias equivocadas. Em vez disso, dever-se-ia apenas admitir, em primeiro lugar, que as cláusulas da constituição podem ser interpretadas seja de modo a autorizar seja de modo a proibir o sistema de cotas e que a decisão que cada juiz toma em favor de uma ou de outra dessas interpretações possíveis não precisa não ser influenciada pela raça, mas apenas ser racionalmente aceitável para qualquer um independentemente da raça. Se um juiz negro defende a constitucionalidade do sistema de cotas com argumentos tais que mesmo uma pessoa branca que rejeitasse essa posição seria capaz de aceitar como pelo menos razoáveis, então ele tem uma interpretação aceitável da constituição e está sendo imparcial. Da mesma forma, se um juiz branco defende a inconstitucionalidade do sistema de cotas com argumentos tais que mesmo uma pessoa negra que rejeitasse essa posição também seria capaz de aceitar como pelo menos razoáveis, então ele também tem uma interpretação aceitável da constituição e também está sendo imparcial. Apenas se a raça fizesse com que juízes brancos ou negros acolhessem uma interpretação inaceitável da constituição é que se poderia dizer que a influência da raça está de fato comprometendo a imparcialidade da decisão.


3. A crítica cética à imparcialidade geralmente se apoia numa concepção genética da validade dos argumentos (um argumento é válido ou inválido conforme a fonte de onde ele proveio) e numa concepção metafísica de verdade (existe uma verdade única para além de toda opinião, à qual só não chegamos devido a nossos interesses, erros e preconceitos). Nenhuma das duas concepções é sustentável. O que decide sobre a validade de um argumento não é a sua origem, mas sim a sua aceitabilidade racional para sujeitos os mais diversos. Isso quer dizer que haver influência de um elemento estranho à lei (como classe social e raça, nos exemplos dados acima) não é suficiente para descartar um posicionamento jurídico: É preciso mostrar que ele não se sustenta com argumentos tais que sejam convincentes independentemente da classe social e da raça do sujeito que os examina. Além disso, a lei se presta a diferentes interpretações e, por isso, são possíveis divergências racionais, quer dizer, divergências que não têm necessariamente causa no interesse, no erro ou no preconceito, mas que surgem espontaneamente das diversas possibilidades que o texto legal deixa para a razão. Quem considera que qualquer pessoa que divirja da sua interpretação da lei não está sendo racional não está pronto para conviver num espaço democrático e pluralista de divergência e está, na prática, dizendo que só quem concorda com a interpetação dele é que é verdadeiramente imparcial. E isso é, com relação à própria opinião, o sinal mais patente de falta de imparcialidade.

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