Raz: Direito, autoridade e positivismo exclusivo
Nesta postagem quero fornecer uma versão extremamente
resumida do principal argumento de Raz em favor do positivismo jurídico exclusivo
com base no conceito de autoridade. Vejamos o argumento premissa por premissa.
1. Toda ordem jurídica reivindica autoridade.
Raz quer que tomemos esta primeira premissa, chamada Tese da
Autoridade, como um truísmo, uma verdade de que ninguém discordaria. Ser uma
ordem jurídica é impor certas normas e supor que os indivíduos têm obrigação de
obedecê-las. Significa que, postas as normas, se considera que, quaisquer que fossem
as razões que o indivíduo teria para agir de outra maneira, ele agora encontra
no que disse a norma uma razão determinante (nos termos de Raz, excludente e protegida) para agir do modo
indicado por ela. Isso é reivindicar autoridade. Logo, é impossível ser uma
ordem jurídica e não reivindicar autoridade.
2. Aquilo que não for capaz de autoridade não pode ser uma ordem jurídica.
Raz quer que tomemos esta segunda premissa, chamada Tese da
Instanciação, como dedutivamente decorrente da primeira. O raciocínio seria este:
O que não pode ter autoridade não pode reivindicar autoridade. Do contrário,
seria uma reivindicação vazia, porque ninguém a aceitaria. Só se pode
reivindicar ter aquilo que se é capaz de ter. Logo, repito, o que não pode ter
autoridade não pode reivindicar autoridade. Mas vimos, em 1, que toda ordem jurídica
reivindica autoridade. Chegamos à conclusão de que é impossível ser uma ordem
jurídica e não reivindicar autoridade. Ora, como ser o tipo de coisa que não
pode ter autoridade torna impossível reivindicar autoridade e como é impossível
ser uma ordem jurídica e não reivindicar autoridade, logo, ser o tipo de coisa
que não pode ter autoridade torna impossível ser uma ordem jurídica.
3. Ter autoridade implica ter primazia sobre o juízo individual.
Essa terceira premissa, chamada Tese da Preempção, é
independente das duas primeiras e só vai interagir com elas no fim do argumento.
Ela funciona assim: Nas escolhas comuns sobre como agir, agir de modo racional
é fazer um balanço de razões, isto é, pesar prós e contras e agir conforme o
lado mais pesado deste balanço. Logo, nas escolhas comuns, agir racionalmente é
agir segundo um balanço de razões. Ora, se outro indivíduo, ou uma instituição,
fornece diretivas para o indivíduo sobre como ele deveria agir, há duas possibilidades
de como se faça isso. (a) Na primeira, a diretiva mesma será uma razão entre
outras, para ser levada em conta no balanço de razões do indivíduo e só
prevalecer se o indivíduo considerar que o lado para o qual a diretiva aponta é
de fato o lado mais pesado no balanço de razões. É assim que operam pedidos,
conselhos e orientações. (b) Na segunda possibilidade, a diretiva será tomada
como uma razão para abrir mão do balanço de razões e agir em conformidade com a
diretiva. É assim que operam exigências, comandos e normas. Apenas no caso (b)
é que se pode dizer que o indivíduo ou instituição que dá as diretrizes tem
autoridade sobre o outro indivíduo para quem a diretriz é dada. Ter autoridade
é suspender a forma normal de agir, isto é, com base no balanço de razões, e
reivindicar que se aja em conformidade com as diretrizes dadas, quer o balanço
de razões esteja em seu favor quer contra elas. É dizer que o indivíduo deve
obedecer e agir como a diretriz lhe indicou que agisse qualquer que seja o seu juízo
individual sobre a melhor maneira de agir. Assim, o que é típico da autoridade
é que ela substitui o juízo individual e tem primazia sobre ele. Logo, fica
bastante claro que ter autoridade implica ter primazia sobre o juízo
individual.
4. Uma ordem que usa razões morais não tem primazia sobre o juízo individual.
Essa premissa decorre da Tese da Preempção e de certa
concepção sobre razões morais. Razões morais são razões acessíveis e
criticáveis por qualquer indivíduo racional. Ninguém pode reivindicar para si uma
autoridade moral tal que, toda vez que emitisse um juízo moral, os indivíduos
abandonassem seu balanço de razões para aderir a este juízo. Ninguém tem
primazia inquestionável em termos de juízos morais. Logo, uma ordem que usasse
razões morais estaria, ao usar razões morais, conclamando, indiretamente, os
indivíduos não a abandonarem seu balanço de razões e aderirem às suas
diretrizes, e sim a usarem de seus balanços de razões para julgarem dessas diretrizes
como moralmente válidas ou não. Se se quer ter primazia sobre o juízo
individual, deve-se fundar suas diretrizes em outro tipo de razão que não
razões morais.
5. Logo, com base em 3 e 4, uma ordem que usa razões morais
não é capaz de autoridade.
Aqui, seria simples questão de inferência dedutiva. Se ter
autoridade é ter primazia sobre o juízo individual e se uma ordem que usa
razões morais não pode ter este tipo de primazia, logo, uma ordem que usa razões
morais não pode ter autoridade. Se tivermos aceito 3 e 4, temos que aceitar 5
como conclusão.
6. Logo, com base em 2 e 5, uma ordem que usa razões morais
não pode ser uma ordem jurídica.
Novamente, simples questão de inferência dedutiva. Se aquilo
que não pode ter autoridade não pode ser uma ordem jurídica e se uma ordem que
usa razões morais não pode ter autoridade, logo, uma ordem que usa razões
morais não pode ser uma ordem jurídica. Ou, o que dá no mesmo: Nenhuma ordem
jurídica pode ser o tipo de ordem que usa razões morais, porque, se for, não
poderá ter autoridade e, desta forma, não poderá ser uma ordem jurídica.
Como podemos ver, o coração do argumento de Raz está nas
premissas 3 e 4. Se aceitarmos as premissas 3 e 4, teremos que aceitar sua
conclusão de que uma ordem jurídica não pode usar razões morais. Para fugirmos
desta conclusão, só temos duas alternativas: (I) negar a premissa 3 e fornecer
outra concepção de autoridade que não a da primazia sobre o juízo individual;
e/ou (II) negar a premissa 4 e mostrar que é possível para um indivíduo ou
instituição reivindicar primazia sobre o juízo individual de outros mesmo
usando razões morais.
Nenhuma das duas coisas é tão simples. Mas todo jurista que
se pretenda defensor de alguma versão do pós-positivismo (sobretudo da versão
de Dworkin), do Neoconstitucionalismo (sobretudo da versão de Alexy) ou mesmo do
Positivismo Jurídico Inclusivo (sobretudo das versões do Hart no Pós-Escrito, de
Coleman, de Waluchow ou de Himma) teria que fornecer refutação convincente a este
argumento.
INDICAÇÕES DE LEITURA
Para se profundar mais no argumento a partir das palavras do
próprio Raz, ver a exposição canônica que se encontra no seu “The Authority of
Law” ou no seu “Practical Reasons and Norms”; para uma versão mais resumida do
argumento, ver o seu artigo “Authority, Law, and Morality”, também publicado
como capítulo do seu livro “Ethics in the Public Domain”.
Para ótimas reconstruções e tentativas de refutação ao
argumento de Raz, ver os artigos “Second-Order Reasons, Uncertainty and Legal
Theory”, de Stephen Perry; “Authority, Law, and Razian Reasons”, de Michael S. Moore;
“Requirements, Reasons, and Raz: Legal Positivism and Legal Duties”, de Matthew
Krammer; “The Instantiation Thesis and Raz's Critique of Inclusive Positivism”,
de Kenneth Einar Himma; e, claro, o capítulo dedicado a Raz no excelente livro “Inclusive
Legal Positivism”, de W. J. Waluchow.
Comentários
1. Como Raz nos convence de que a premissa (1) é um truísmo? Pergunto porque pensei que Raz definiu a autoridade como a principal característica das ordens jurídicas. Se assumirmos outra premissa, a sequencia dos argumentos será a mesma?
2. Observei que a racionalidade que Raz define é uma racionalidade no máximo prudencial. Falaste em balanço de razões e escolha para agir. Como funciona esse balanço? Ele é um cálculo estratégico ou uma ponderação prudencial?
3. No momento em que o indivíduo escolhe agir em conformidade com as razões do direito que possuem autoridade, ficou na tua explicação que a escolha de agir em conformidade com as razões jurídica ocorre porque essas razões tem uma autoridade que não é mais discutível. Como razões morais são discutíveis, a tese da substituição do juízo individual indica que se os agentes escolhem agir em conformidade com as razões jurídicas o fazem porque elas não são discutíveis. A minha pergunta é: a decisão de agir em conformidade com as razões jurídicas não é sim mesma moral?
2.
1) As normas jurídicas são obrigatórias, e não facultativas. Isto quer dizer que o Direito não dá a seu destinatário a faculdade de, julgando acerca da situação (circunstâncias pertinentes e razões em jogo), decidir por si mesmo se é mais racional seguir a norma ou não seguir. Alguém que é réu numa ação em que desobedeceu a uma norma jurídica não pode alegar em juízo que, ao levar em conta circunstâncias e razões, decidiu fazer coisa diversa da prevista naquela norma. Então, as normas jurídicas reivindicam sempre primazia sobre outras razões em contrário. Elas reivindicam que, quaisquer que sejam as razões que o indivíduo tenha para agir de outra forma, ele as desconsidere em favor da razão (excludente e protegida) de que a norma exige certa conduta específica. É isso que significa ser norma obrigatória, e não facultativa. Logo, o tipo de reivindicação que normas obrigatórias fazem sobre a conduta do indivíduo é exatamente a de autoridade. Na medida em que o Direito é formado por normas obrigatórias, ser uma ordem jurídica e reivindicar autoridade passam a ser atributos implicados entre si.
2.1) Considerações prudenciais claramente tem a forma de um balanço de razões, mas em que todas as razões são apenas razões de primeira ordem, isto é, razões para agir. Vistas razões pró e contra certo curso de ação, se escolhe, a partir do critério do maior ganho, vantagem ou resultados, a ação mais adequada. Logo, considerações de tipo prudencial se encaixam no modelo do balanço de razões de Raz.
2.2) Considerações deontológicas ou consequencialistas se encaixam no modelo também. Mas, no caso delas, o balanço de razões já conta não apenas com razões de primeira ordem, ou seja, razões para agir, mas também com razões de segunda ordem, ou seja, razões para levar certas razões mais ou menos em conta que outras. No modelo deontológico, razões que se apoiam num teste de universalidade ou num acordo ou consenso entre os agentes funcionam como razões excludentes contra outras razões (fundadas no interesse não universalizável ou não consensual de um dos agentes, por exemplo). No modelo consequencialista, razões que se apoiam num teste de maximização do bem considerado relevante (prazer, bem-estar, felicidade, direitos etc.) funcionam como razões excludentes contra outras razões (fundadas no interesse momentâneo de apenas um dos agentes, por exemplo). Introduzindo as razões de segunda ordem, o modelo acomoda igualmente bem estas outras teorias éticas.
2.3) Mesmo éticas situacionais como a ética das virtudes ou a ética do cuidado podem ser acomodadas ao modelo. No modelo das virtudes, razões que se apoiam num modelo virtuoso ideal a ser imitado ou no cultivo das capacidades fundamentais para o florescimento humano funcionam como razões excludentes contra outras razões (fundadas em disposições não virtuosas, por exemplo). No modelo do cuidado, razões que se apoiam na manutenção e no reforçamento das relações especiais de amor e proteção funcionam como razões excludentes contra outras razões (fundadas na valorização de apenas um dos indivíduos, por exemplo).
Por isso, a ideia raziana do balanço de razões, como não permanece ligada apenas a razões de primeira ordem, não precisa ser entendida apenas como cálculo prudencial, embora consiga dar conta também do cálculo prudencial. Ao introduzir razões de segunda ordem, Raz dá conta de praticamente todas as teorias morais relevantes, desde que, claro, esteja dentro do espectro da ação racional.
A questão essencial para Raz é que falar a linguagem da moral é falar a linguagem dos iguais, enquanto falar a linguagem do direito é falar a linguagem dos desiguais, ou seja, do que tem autoridade de um lado e do que está submetido a ela de outro. Se A diz a B: "Faça X, porque é moralmente justificado", está abrindo para B a oportunidade de examinar até que ponto X é mesmo moralmente justificado e de não fazer X caso conclua que não é. Já se A diz a B: "Faça X, porque é moralmente justificado", mas, em seguida, acrescenta: "E não está aberto ao seu juízo decidir ou agir em contrário" não está de fato se baseando na razão moral, e sim, na verdade, em sua autoridade.
É essa última constatação que Raz usa contra Finnis, Dworkin e os positivistas inclusivos. Estes filósofos do direito listam incontáveis casos em que normas jurídicas podem ser fundadas em razões morais e em que decisões judiciais apelaram a razões morais. Mas ignoram o fato de que tais normas e decisões não abrem um "diálogo de razões morais" com seus destinatários. Ações afirmativas podem ser baseadas em razões morais, mas, uma vez fixadas em norma, se impõem como obrigatórias mesmo para os que pensam que ações afirmativas não são a alternativa moralmente mais justificada. Isso é basear-se na moral, ou na autoridade? A decisão que autoriza filmes e ensaios pornográficos pode recorrer a razões morais, mas, uma vez tomada, se impõe como obrigatória mesmo para os que pensam que autorizar pornografia não é a alternativa moralmente mais justificada. Novamente: Isso é basear-se na moral, ou na autoridade?
E mesmo que eu acredite em alguma teoria moral que diga que o debate democrático, e não o juízo individual, é a melhor forma de descobrir quais cursos de ação são moralmente mais justificados, ainda restariam as perguntas: A decisão a que este debate chega é cognitivamente falível? Se é, então, a norma resultante deste debate, quando incidir sobre certa situação particular, pode vir a exigir uma ação que não é a moralmente mais justificada, não é mesmo? Mas, nesta situação, a norma, mesmo exigindo o que não é moralmente mais justificado, ainda reivindicará para si primazia sobre o juízo individual? Se sim, então, sua autoridade não depende da justificação moral, e sim da presunção de justificação moral. E se esta presunção vale mesmo contra o juízo do indivíduo que consegue identificar, no caso concreto, que a presunção é falsa, então, concluirá Raz, aquilo em que ela se apoia não é de fato em razões morais, e sim em pura e simples autoridade.
Obrigado por ter lido a postagem e feito comentários. Leitura, comentário e elogio do orientador não é todo dia e é para ser muito comemorado.
Vou responder preliminarmente as duas perguntas:
1) Raz não é um não cognitivista moral. Pelo contrário, o liberalismo dele está diretamente fundado em razões morais e Raz considera que razões morais são tão aceitáveis e racionais quanto quaisquer outras, assim como dar a elas prioridade sobre outras faz parte do que faz delas razões morais. O motivo pelo qual ele recusa a relação entre autoridade e moral é outro. Para ele, autoridade implica que alguém diz algo que exige que outro suspenda seu juízo sobre o mesmo assunto. Neste sentido, como as razões morais são abertas à discussão por todos, ninguém está em posição de ser uma autoridade moral sobre os demais. No que se refere à moral, estamos todos na mesma posição, não porque a moral é irracional, e sim porque é racionalmente acessível e discutível por todos. Se alguém me dá uma razão moral para fazer algo, este é sempre o tipo de razão que eu sou estou obrigado a aceitar na medida em que a considere moralmente correta. Portanto, uma razão moral nunca suspende o meu juízo, ele me convida a aprová-la a partir do meu juízo. Daí que exercer autoridade e usar argumentos morais sejam coisas incompatíveis entre si.
2) Sim, todas estas coisas se aplicam, mas elas provam apenas que a obediência depende do exercício legítimo da autoridade. E o Estado só exerce a autoridade de modo legítimo se produz normas sobre aquelas coisas em que ele está em melhor posição que o indivíduo para decidir. Neste sentido, recomendo fortemente ver esta minha outra postagem aqui sobre a ideia de autoridade em Raz: http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/2012/11/raz-razoes-de-primeira-ordem-de-segunda.html
Abraços!